Para além da noite de Patpong, o bas fond onde um incauto transeunte pode aceitar ingenuamente um dos permanentes convites para um “ping-pong show” julgando que vai assistir a um jogo de ténis de mesa…, há a moderna movida de Bangkok. Estive numa das discotecas de moda, o clube Spasso (na crista da onda há mais de 20 anos), e foi surpreendente encontrar jovens tailandeses celebrando alegremente o Halloween como se fosse uma tradição local. É o império da globalização, a contaminação ocidental que se traduz em muitos outros aspectos, por exemplo na proliferação de restaurantes de pizzas e hamburgers. No Spasso é comum ver homens de negócios ocidentais com belas ninfas tailandesas, muito mais novas do que eles. Mas, afinal, tudo isto é tão velho como o mundo e não existe pecado a sul do equador, como diria o Chico Buarque…
De manhã cedo, após a visita ao esmagador Grand Palace e ao Templo do Buda Esmeralda, lava-me a alma um belo passeio pelos canais do Chao Phraya num barco típico, vagamente parecido com uma gôndola veneziana. A cidade vista do rio tem outro encanto e outro mistério, com o imponente Wat Arun (ou “temple of the Dawn”) a dominar a margem, lembrando-nos o esplendor do antigo reino khmer de Ayutthaya, a mítica capital do Sião no século XIV. Depois disto, não se resiste: há que rumar à própria Ayutthaya, ou ao que dela resta após a guerra com a Birmânia, com os consequentes destruição, declínio e abandono da cidade. Fica a menos de
E chego ao meu último dia em Bangkok, já com pena de ter de deixar a cidade. Troco as últimas compras por um programa prometido a um amigo e também muito apetecido: uma visita à embaixada portuguesa, autêntica pérola do nosso património diplomático. Atravesso as ruas num tuk-tuk veloz, que me deposita no portão verde decorado com o escudo português e se afasta, deixando-me sozinha e sem a menor garantia de um “abre-te Sésamo” que me faça ser recebida, já que não avisei previamente da minha visita. Mas tenho sorte (não a tenho sempre, afinal?): é o próprio embaixador quem me recebe, sorridente e solícito. E, nas duas horas que me separam do aeroporto, guia-me numa visita detalhada e exclusiva pela residência e pelos jardins, numa cavaqueira deliciosa e recheada de histórias sobre aquele importante baluarte da história portuguesa no Oriente, só por si digno de uma obra literária. É pelo embaixador António Faria e Maya que fico a saber que Portugal parece andar distraído (como sempre, acrescento eu…) quanto às comemorações da importantíssima efeméride que se aproxima: a passagem dos 500 anos sobre a chegada dos primeiros portugueses ao Sião, em 1511. Ao contrário da Tailândia, diga-se, que está a preparar os festejos com antecedência e orgulho e até já começou por oferecer a Portugal uma “Sala” (pavilhão tailandês cujo nome deriva da palavra portuguesa homónima), presente esse para o qual demorámos mais de um ano a encontrar local adequado, acabando por negar-lhe, ainda por cima, a localização lógica e nobre: os arredores dos Jerónimos e da Torre de Belém. Enfim…
Despeço-me de Bangkok com a certeza de que voltarei um dia. Num dos terminais do moderníssimo e descomunal Aeroporto Internacional de Don Mueang (o maior free shop que alguma vez vi) espera-me um pequeno aviãozinho da Bangkok Airways, todo pintado com figuras coloridas e hélices exteriores enormes, também pintadas. Não há duvida, estamos no reino do arco-íris. É este brinquedo que me levará ao meu próximo destino: Siem Reap, Camboja.
Curiosidade: Bangkok (ou Banguecoque, na tradução portuguesa), é apenas uma abreviatura do nome completo da cidade, que consta no livro dos recordes (o Guinness) como o maior nome de cidade do mundo: Krung Thep Mahanakhon Amon Rattanakosin Mahinthara Yuthaya Mahadilok Phop Noppharat Ratchathani Burirom Udomratchaniwet Mahasathan Amon Piman Awatan Sathit Sakkathattiya Witsanukam Prasit (กรุงเทพมหานคร อมรรัตนโกสินทร์ มหินทรายุธยามหาดิลกภพ นพรัตน์ราชธานี บุรีรมย์อุดมราชนิเวศน์มหาสถาน อมรพิมานอวตารสถิต สักกะทัตติยะวิษณุกรรมประสิทธิ์). Ou seja, "A cidade dos anjos, a grande cidade, a cidade que é jóia eterna, a cidade inabalável do deus Indra, a grande capital do mundo ornada com nove preciosas gemas, a cidade feliz, Palácio Real enorme em abundância que se assemelha à morada celestial onde reina o deus reencarnado, uma cidade dada por Indra e construída por Vishnukam".
(cont.)
O primeiro impacto do Oriente sobre um europeu razoavelmente calejado pode ser descrito como uma verdadeira invasão dos sentidos. De repente, sem pré-aviso, tomam-nos de assalto as cores, os cheiros, os sons e o afago húmido de um calor desconhecido. Tudo é novo e deliciosamente estranho, excitante como um arrepio em noite de Verão. E não falo de praias paradisíacas, com coqueiros e tépidos mares transparentes. Neste caso, quem me abre as portas do Oriente é uma enorme metrópole, com 14 milhões de habitantes e uma arquitectura urbana arrojada.
Mesmo assim, o exotismo impõe-se através de uma natureza indómita, que irrompe por todo o lado sempre que pode. Há zonas de vegetação selvagem em plena cidade e muita, muita água: braços de rio e canais artificiais que substituem ruas, pequenos lagos no centro de condomínios de pédios altíssimos. À primeira vista, e observada da janela de um 17º andar do hotel Le Meridien, dir-se-ia que Bangkok se assemelha a New York. Mas esta perspectiva “aérea” exclui o chão e isso faz toda a diferença, porque é a esse nível que o Oriente se manifesta com toda a sua exuberância: bancas que vendem tudo o que possa imaginar-se, da comida ao artesanato passando por animais vivos; tuk-tuks que rivalizam com táxis (estes, por sua vez, ostentando todas as cores do arco-íris), num um trânsito caótico que só terá paralelo, talvez, em Nápoles; pressurosos alfaiates que fazem provas de fatos Armani em sedas e caxemiras; massagistas que oferecem serviços vários, das terapias com peixes para doenças de pele até à “hot candle massage”, a delícia mais ousada do catálogo. Enfim, uma multidão transbordante e sorridente que nos recebe de braços abertos, com uma surpreendente hospitalidade quase naif ainda, depois de anos e anos de invasão turística ocidental.
É claro que o meu hotel, de uma estética imbatível, ultra-moderno e requintado em extremo – não é por acaso que existe a expressão “luxo asiático” – se situa, para o bem e para o mal, mesmo em frente da famosa Patpong (quem não se lembra desta rua no filme Emmanuelle?), onde bate mais quente e mais forte o coração de Bangkok. Há um mercado nocturno que todos os dias, religiosamente, aparece às seis da tarde para desaparecer de novo à uma da manhã, num ritual complicado de montagem e desmontagem de tubos e lonas executado por um enxame de vendedores, em tempo recorde.
Quando acaba o bric-a-brac, começa outro mercado: uma oferta variada de espectáculos e serviços eróticos, que começam em plena rua e acabam em primeiros andares pouco recomendáveis, passando pelos bares “de varão” onde mil rapariguinhas - que parecem ter sido clonadas de um único modelo - exibem os seus (des)encantos.
Sobre isto, uma curiosidade: diz-se que há quatro sexos em Bangkok: as mulheres e os homens ditos “normais”, os Lady boys (homens que se apresentam e agem como mulheres, mesmo durante o dia) e as Tom girls (o inverso: mulheres transformadas em homens, no aspecto e nas atitudes). Para além das fachadas, também uma cirurgia de mudança de sexo custa uns míseros dois mil euros, pelo que a moda está em franco crescimento.
Depois há a cozinha Thai, deliciosa e saudável. Apaixonei-me sem remédio pelos legumes, os camarões, as limonadas, as mil variedades de arroz, e só das nossas sobremesas tive saudades. E há também o grande mercado de fim-de-semana, tão gigantesco que é essencial andarmos de mapa na mão (distribuído pelos muitos polícias de serviço) para não nos perdermos. Eu perdi-me, mas por algumas antiguidades de cuja idade duvido muito, dada a insignificância do preço.
E há ainda o mercado das flores ao longo do rio, uma experiência sensorial única: lindíssimas coroas e colares de orquídias de todas as cores, para além de uma imensidade de outras flores de nomes desconhecidos. Por sorte, estava em Bangkok na véspera do Grande Festival da Lua Cheia. No dia seguinte, todas aquelas magníficas arquitecturas florais seriam lançadas ao rio numa manifestação de alegria, como tributo às divindades aquáticas.
E perdi-me também, mas propositadamente, nas ruas menos centrais de Bangkok. Se há coisa que gosto de fazer é vaguear sozinha pelas ruas de uma cidade desconhecida, sentindo-lhes o pulso e a alma. Foi assim que fui parar a um templo frequentado só por locais (não havia uma única palavra traduzida em inglês, como acontece por toda a cidade). Sentei-me no chão sobre os joelhos e fiquei a observar os presentes, imitando-lhes os gestos – como queimar paus de insenso, por exemplo – na esperança de me diluir no cenário e não perturbar. De repente, todos saíram dali ao mesmo tempo e eu fiquei sozinha, sem saber muito bem o que fazer a seguir. Preparava-me para ir-me embora quando alguém me tocou no ombro e me convidou, com um gesto, a seguir o grupo. Lá percebi que era um casamento e que me convidavam a fazer uma saúde aos noivos. Acabei por almoçar com eles, “conversando” com gestos e sorrisos porque muito poucos percebiam outra língua que não a sua. Foi uma experiência que não esquecerei.
(cont.)
Faço a mala com a expectativa e a excitação que em mim sempre antecedem as grandes viagens, despindo do espírito todos os pesos e amarras para que fique a condizer com a roupa que levo: só algodões e linhos, tudo muito leve, fresco e cómodo. Vou para o longínquo Oriente - Tailândia e Camboja - onde o calor não dá tréguas, apesar da estação seca que começa agora. Levo uma mala grande mas meio vazia, sabendo de antemão que voltará bem cheia, dessas paragens onde as tentações consumistas são tão fortes como quase inconsequentes no orçamento. Um perigo, portanto. Junto-lhe, depois de uma última verificação, o imprescindível repelente de insectos (sou uma vítima habitual), o meu Ipod (para além de companhia no avião, tenho a secreta vontade de entrar em Angkor Wat a ouvir Beethoven), alguns medicamentos SOS e um livro que me faça esquecer as longas horas das viagens aéreas, já que não vou ter tempo para grandes leituras quando lá chegar. A escolha não é difícil e parece-me adequada: os Contos Orientais de Marguerite Yourcenar, pérolas clássicas que constituirão uma perfeita e suave antecâmara ao desafio que me aguarda do outro lado do mundo. Resolvo alguns assuntos de última hora e almoço com um querido amigo, embaixador em Bangkok por muitos anos e agora reformado, que me dá preciosas dicas e me enche de recomendações importantes. Tudo a postos, respiro fundo e estou pronta a começar a aventura. Primeira escala: Paris. A morrinha cinzenta do costume, a lembrar-me de que o charme também pode ser um suspiro e um arrepio de frio. Mas adiante. É tudo isso que deixo para trás, em troca de uma luz dourada e de um calor abrasador. Mas, sobretudo, em troca do desafio da eterna pergunta: o que será que me espera por lá? Pergunta que, aliás, engloba sempre o seu reverso: o que espero eu do que me espera? Se é verdade que todas as viagens são interiores, em busca de nós próprios (Pessoa dixit), desconfio de que esta me vai dar algumas respostas importantes. É com tudo isto fervilhando na cabeça que entro no enorme airbus da Air France, com a sensação de entrar numa espécie de máquina do tempo: começo a viagem em 2009, mas, quando chegar ao meu destino, o calendário dir-me-á que estou no ano de 2552.
(cont.)
... já volto.
Se puder, dou notícias.
Só um pouco mais da vossa paciência, se ainda estiverem para nos aturar...
Vou fugir ao Carnaval.
A casa é vossa, como sempre.
Até terça-feira.
Imagine um grande festival de música pop/rock com estrelas de craveira internacional, numa pequena cidade da costa norte portuguesa, durante um fim-de-semana de tempo magnífico, depois de um longo período de frio e chuva. Agora, substitua as bandas, os vocalistas, os músicos, os técnicos de som, os coros, etc, por escritores, editores, tradutores, jornalistas, designers, ilustradores, enfim, todos os que fazem parte do universo dos livros. Num ambiente de festa totalmente informal, sem sombra de vedetismo ou pose, por mais importantes que sejam os nomes em que se tropeça durante todo o dia (e são-no, muitos deles), cerca de duzentas pessoas vindas de todos os países de expressão ibérica (Portugal, Espanha, África, América Latina, etc), dedicam quatro dias/noites a um extraordinário convívio e troca de ideias. Por uns dias, a Póvoa enche-se de uma população estranhamente ambulante e heterogénea, como se se tratasse realmente de um festival de música.
É isto o encontro anual Correntes d'Escritas, na Póvoa do Varzim, uma notável iniciativa do pelouro da Cultura da Câmara Municipal da cidade. Este ano "as Correntes" (nome pelo qual o encontro é já carinhosamente conhecido) comemoraram dez anos de existência e por isso foram mais concorridas do que nunca. É uma alegre azáfama: todos os dias há lançamentos de livros, projecção de filmes ou peças de teatro, conferências, palestras, debates e entregas de prémios, enchendo sempre até às portas os vários espaços que a CMPV disponibiliza para o efeito. Nunca o Grande Auditório - local onde se passam os principais acontecimentos - tem uma cadeira vazia, seja a que horas for.
O centro vital da animação é o Novotel Vermar, que aloja os convidados e fica exclusivamente dedicado às Correntes durante estes dias: o bar do hotel é um permanente entra-e-sai de gente, de conversas, de gargalhadas, de histórias e anedotas, de combinações, de projectos, de negócios, tudo isto em tonalidades várias de português e castelhano. Todos os dias a organização oferece um excelente jantar volante, onde muitas das conversas que animam a "bicha" para os pratos quentes ou as sobremesas, são antológicas. No último dia há um jantar de encerramento com música ao vivo e bailarico, onde a boa disposição atinge o auge. É engraçado observar sorumbáticas figuras das letras, que associamos habitualmente ao isolamento e até à depressão, felizes e descontraídas, por umas horas, a dançar a macarena ou uma qualquer melada canção nordestina.
Da organização - cuja alma e coração são a Manuela Ribeiro e o Francisco Guedes, da CMPV - não pode dizer-se menos do que "5 estrelas". Mas muitos outros funcionários superiores da Câmara (psicólogos, assistentes sociais, juristas, etc.) colaboram voluntariamente nesta iniciativa, fazendo de tudo um pouco com um sorriso nos lábios e apenas pelo prazer de ajudar. Tudo corre sobre rodas, sem stress nem atropelos, e não faltam mimos para todos: além de dois autocarros de turismo, que fazem continuamente os percursos e deslocações dos grupos entre os locais onde decorrem as actividades, há uma frota de carros topo de gama (patrocínio da BMW da Póvoa), com chauffeur, postos à inteira disposição de cada um para deslocações individuais, a qualquer hora.
Enfim, foi um fim-de-semana bem passado, original, divertido e produtivo. As Correntes d'Escritas já se tornaram uma referência nas letras de expressão ibérica, e estão para ficar. Para o ano há mais, e eu espero voltar.
Foi com o meu Pai que aprendi (eu e os meus irmãos) a conhecer e a amar Espanha como a conhecer e a amar Portugal. Levava-nos de viagem, à descoberta de cada pedra com história, de cada local sagrado, de cada paraíso gastronómico, de cada manifestação de arte. E fazia-o indiscriminadamente nos dois países, para que - sabendo embora a qual pertencíamos por nascimento - acabássemos por não distingui-los no coração e na pele. Explicava-nos as razões pelas quais dois povos que se dizem "hermanos" não se misturam mais do que água e azeite, as diferenças atávicas e as que as circunstâncias determinaram, e ainda as que não existem mas se inventam, para que as fronteiras criadas pelos homens não se esbatam na voragem sábia e aglutinadora da natureza. Contava-nos as histórias da História (a sua grande paixão), apreciadas e analisadas com uma notável equidistância que visava sempre diluir ódios e encorajar aproximações. O Iberismo sempre foi para nós, por todas estas razões, um conceito pacífico.
Tudo isto está inscrito nas minhas memórias de criança e de adolescente como um prazer sempre renovado, sempre desejado. Adorávamos viajar com o meu Pai, que tinha a enorme paciência de levar-nos mesmo sem a minha Mãe (que nem sempre podia acompanhar-nos) e se comportava connosco como um líder benevolente mas firme, divertido mas de uma autoridade inquestionável. Em Espanha ficávamos quase sempre nos Paradores (acho que os conheço todos), em Portugal nas Pousadas ou nos hotéis mais tradicionais. Gosto de passar esta herança aos meus filhos e procuro repetir com eles estas viagens de descoberta. São uma espécie de homenagem ao meu Pai. Ainda agora, nestes dias em Madrid, me lembrei dele ao saborear o cocido madrileño do La Bola, as inigualáveis alcachofras do Pimiento Verde ou a magnífica perdiz do célebre Botín. E pensei para comigo como reagiria ele às deliciosas tapas de nouvelle cuisine da Lateral, ele que era um gourmet exigente mas pouco dado a modernices culinárias.
Devo ao meu Pai uma paixão por Espanha que não se esgota. Vou lá, sempre que posso, encher-me de uma energia inexplicável, de uma alegria de viver que nunca vejo por cá. Reconheço nos espanhóis, inevitavelmente, uma fibra que nos falta: a de um povo que gosta de si próprio e do que é seu. Acabei de constatá-lo uma vez mais, nestes dias: mesmo nas circunstâncias extremamente difíceis que também eles atravessam - a tremenda crise que apanhou desprevenida uma economia saudável e fez disparar a taxa do desemprego para níveis assustadores, de um momento para o outro - os espanhóis não desarmam e recusam-se a abandonar a sua fantástica celebração da vida. Continuam a sair para a rua ao fim da tarde, alegres e barulhentos, desafiando o frio cortante e as ainda mais cortantes previsões de futuro. À vista de uma ameaça nacional, vejo-os arregaçar as mangas e virar-se para dentro, protegendo-se do exterior e obrigando-se a consumir primeiro o que é produzido no seu país. Enquanto os portugueses choram a sua sorte e esperam, imóveis, que um qualquer messias os liberte de todos os males, os espanhóis enfrentam as adversidades com a determinação e a coragem de quem já sobreviveu a uma guerra civil.
E eu, embora me sinta muito bem na minha pele portuguesa, às vezes tenho pena de não ter nascido do outro lado da fronteira.
Vuelvo con ojos que miran, con labios que besan, con manos que bailan.
Vuelvo de bien con la vida, el alma llena del rojo y del negro de esas viejas glorias donde nacen las alas.
Y aunque me digan al oído "quédate en Madrid", vuelvo por qué siempre echo de menos al azul de mi tierra, de mi mar, de mi soledad.
(Estrella Morente - Volver)
Vou arejar. Mudar de ares. Mudar de cenário. Ver as vistas.
Nem que seja só por um fim-de-semana alargado, com frio, chuva e neve,
Madrid é sempre um prazer. Hasta lunes!
(Ana Belén y Joaquin Sabina - A la sombra de un león)
Esta belíssima fotografia de Lisboa, saída da arte e da sensibilidade da Luísa, levou-me de repente até Istambul. Por isso republico este post escrito há cerca de um ano, quando lá estive pela segunda vez depois de muitos anos.
De Istambul, com amor
Entre mim e Istambul há uma paixão antiga. Começou há muitos anos, com um pianissimo e inocente flirt que prometia grandes voos, mas afinal se deixou adormecer devagarinho e acabou por ser cilindrado pela voragem da vida. Mas o limbo do tempo manteve a paixão viva, porque voltou agora, em cheio, sem sequer se fazer anunciar.
É um mundo que tem muito em comum comigo: ambos vestimos várias peles, ambos gostamos de mistério e de exotismo, ambos somos feitos de uma matéria absorvente, flexível, em permanente mutação. Talvez por isso me sinta tão bem lá. Costumo ter grande facilidade em fundir-me com os sítios aonde vou, e em poucos dias tenho alma de nativa. seja onde for. Mas em Istambul isso é-me especialmente fácil e natural. A cidade oferece as suas muitas faces a quem a quiser descobrir, mas há que respeitá-la e entendê-la para fruí-la inteiramente.
Além disso, uma viagem a Istambul é para nós, portugueses, uma alucinante e surpreendente descoberta de muitas das nossas origens e tradições: de repente, entramos na belíssima Mesquita Azul (nesta viagem, eu acordava e adormecia com a mágica imagem da mesquita em grande plano, emoldurada pela janela do meu quarto... como não sonhar com garbosos Aladinos, sobrevoando os minaretes nos seus tapetes ondulantes?) e descobrimos, fascinados, o catálogo completo de padrões das nossas chitas de Alcobaça, estampados em azulejos e frescos, decorando paredes, arcos e abobadilhas; dobramos uma esquina e o inconfundível cheirinho de castanhas assadas invade-nos as narinas, vindo de um carrinho igual aos nossos (pré-ASAE, claro), com um vendedor que as arruma uma a uma, criteriosamente; no deslumbrante Harém do palácio Topkapi encontramos ruas inteiras de pequenos seixos rolados, pretos e brancos, em desenhos caprichosos que nos revelam, sem enganos, a genealogia da calçada portuguesa; um eléctrico (rigorosamente igual aos nossos com excepção da cor, encarnado e não amarelo) desce uma rampa íngreme e traz-nos de volta a casa, a Lisboa, num lance de magia; sobre a ponte Gálata comemos uma espécie de sardinha assada sobre o pão, como se estivéssemos na Madragoa ou em Alfama, nos santos populares.
E há muitos mais paralelismos: a luz de Istambul é a mesma luz gloriosa de Lisboa, de um branco azulado que não há em mais sítio nenhum, que eu saiba; o Bósforo tem quase a largura do Tejo, com uma Cacilhas asiática em frente, na outra banda, e uma ponte de ferro que apenas difere da nossa no comprimento e na cor; a cozinha, mediterrânica como a portuguesa, tem sabores que reconhecemos facilmente e outros que deixámos que se perdessem, com a globalização que já nos engoliu; a simpatia feita de manha, o improviso, a marosca, o fatalismo e outros atributos que nos caracterizam, também a nós, fazem dos turcos uma espécie de portugueses exóticos, mais sensuais, mais feios e ainda mais aldrabões. Em todas as lojas nos oferecem um delicioso chá fervente de maçã, um ritual sagrado e irrecusável que acompanha o despique da negociação obrigatória de cada compra até à redução do preço a um terço do inicial. O Grande Bazar, com as suas quase 5.000 lojas, é um abismo de tentações. E o Bazar Egípcio (também chamado Bazar das Especiarias) um festim para os sentidos, sobretudo para os gastrónomos como eu.
Istambul é um verdadeiro caleidoscópio: ora nos sai Bizâncio, num esplendor de mosaicos de ouro e cores deslumbrantes (o exemplo mais impressionante é a igreja de São Salvador de Chora, um comovente bastião da fé cristã em terras islâmicas, com paredes e tectos cobertos de cenas da Bíblia, de uma beleza rara e em óptimo estado de conservação); ora nos sai Constantinopla, imponente como o império que a baptizou e que por lá deixou vestígios inigualáveis (como a maravilhosa Cisterna da Basílica ou Hagia Sophia, irmã cristã da Mesquita Azul e uma majestosa manta de retalhos de cultos religiosos); ora nos sai um poderoso marco otomano, com incontáveis mesquitas cujos altifalantes, nos minaretes, propagam arrepiantes litanias de apelo à oração, 5 vezes por dia, e transformam a cidade (sobretudo ao entardecer, quando começam a iluminar-se) num cenário das mil e uma noites; ora nos sai, finalmente, uma metrópole moderna e fervilhante do lado de lá das pontes, piscando o olho ao ocidente e aspirando por um lugar ao sol da Europa.
Não fora a Ásia e os seus conflitos, sempre tão omnipresentes, e o sonho estaria mais perto. Mas não é possível ignorarmos, por exemplo, um grupo de mulheres embiocadas em trapos pretos, escondidas atrás de uma grade e separadas dos todo-poderosos homens, no simples acto de rezar, numa mesquita, ao mesmo Deus. Ao mesmo? Não, não pode ser o mesmo. As mulheres muçulmanas são, com toda a certeza, filhas de um deus menor. E é nesse ponto, de uma enormidade inultrapassável, que eu e Istambul nos zangamos e acabamos o romance.
Mas recomeçamos logo a seguir. Porque, afinal de contas, todos os amantes têm defeitos e qualidades.
Can Atilla - Mara Despina
Vêm esta porta verde, a passagem mágica para uma das lagoas de S. Miguel? Pois é, ainda não a transpus completamente para o lado de cá... e ainda estou a sacudir de mim salpicos de espuma do mar e restos de névoa. Levo sempre algum tempo a sintonizar, e desta vez a tarefa não é nada fácil.
Escrever? Impossível. Por enquanto não me sai nem uma linha...
Depois da beleza agreste e selvagem do Pico, os olhos estão rendidos. Tudo nos parece harmonioso e o mundo que antes nos era natural foi remetido à condição de um passado longínquo, vago. As ilhas de bruma já nos invadiram com a sua calma, o seu ritmo de vida que pulsa em uníssono com as marés atlânticas, a sua lógica sobrehumana, absolutamente desarmante. Neste estado de espírito rumamos ao grupo oriental, julgando que já nada nos poderá surpreender.
Pura ilusão: não pode haver nada, rigorosamente nada, que nos prepare para a visão das lagoas de S. Miguel. São cenários irreais, de uma beleza arrasadora como nunca encontrei igual. De repente, numa curva da estrada que serpenteia, subindo sempre - entre milhões de hortenses que vão do branco virginal ao violeta, numa paleta estonteante de azuis - surge a Lagoa das Sete Cidades vista de cima, num vale profundo que parece pertencer a outra dimensão. Os folhetos turísticos, as belas fotografias e as descrições entusiastas que tivemos antes, criaram em nós expectativas altíssimas. Temíamos, naturalmente, a desilusão que quase sempre lhes sucede. Mas neste caso a realidade supera todas as expectativas e deixa-nos sem respiração. As cores da lagoa e os raios de sol coados pelas nuvens que rodeiam a cratera, contibuem para dar a todo o conjunto uma aura mítica: é a própria Avalon que nos aparece aos pés e nos deixa extasiados.
Rasgadas as brumas, muitos outros sortilégios nos esperam depois desta primeira visão: a Lagoa do Fogo, com águas de um verde-esmeralda inimitável; a minúscula Lagoa do Canário, verdadeiro bosque encantado cuja entrada nos é franqueada por uma porta de árvores e de musgo, e onde acharíamos naturalíssimo ver surgir duendes e elfos; as Lagoas do Congro, das Empanadas, de S. Tiago e das Furnas, rodeadas igualmente de escarpas altíssimas em que imperam as belíssimas criptomérias (espécie de abeto gigante trazido do Japão pelos navegadores portugueses, que invade as encostas de toda a ilha); a paisagem fantasmagórica das Furnas, onde o cheiro intenso a enxofre, as colunas de fumo branco vindas do chão e as águas em permanente ebulição nos lembram que estamos sobre o perigo eminente de uma manifestação mais exuberante da força incontrolável do centro da Terra; os jardins magníficos do Hotel Terra Nostra, ainda nas Furnas, com a sua piscina de água quente e sulfurosa, cor de ferrugem; a cascata igualmente quente da Caldeira Velha; e muitas, muitas mais maravilhas desta ilha tão prodigiosa que quase a julgamos uma twilight zone de beleza sufocante.
Das vilas, semeadas ao longo da costa, rendi-me a Ribeira Grande e Vila Franca do Campo, dois dos mais antigos aglomerados urbanos. A última foi a primeira capital de S. Miguel e conserva ainda uma certa imponência que recorda esse estatuto. Em frente a Vila Franca do Campo fica o famoso ilhéu em forma de anel, com uma piscina natural de água transparente e morna, onde tomámos um banho memorável. A viagem faz-se numa pequena traineira que liga o ilhéu à vila, de meia em meia hora. É uma sensação estranha estarmos ali dentro, protegidos e confiantes, sabendo que do lado de fora embatem contra as rochas as ondas pouco amistosas do atlântico, cujo estrondo ouvimos claramente e cujos salpicos nos chegam a tocar.
Outra das curiosidades de S. Miguel (suponho que exista também nas outras ilhas dos Açores) é o cuidado extremo que há com as estradas: vi inúmeros jardineiros que tratam, aparam e uniformizam os tufos de hortenses e buxos ao longo de quilómetros de estrada alcatroada, como se de um jardim camarário se tratasse. Não há papeis nem qualquer lixo visível, o que, a par com a existência de inúmeras vacas leiteiras nas encostas inclinadas e verdes, faz lembrar a Suiça.
Fica muitíssimo por visitar e por dizer sobre estas ilhas mágicas, mas fica também a certeza de que voltarei. Mais: de que voltarei sempre. Ainda sob o encantamento deste lugar, apetece-me quase dizer que voltarei "para sempre". Os Açores são uma paixão da qual não tenciono curar-me nunca mais.
Nota: Aos futuros viajantes que me leiam, deixo aqui algumas dicas dos lugares de que mais gostei para comer e dormir. Aviso desde já que prefiro sempre pequenos hotéis de charme ou casas particulares às grandes unidades hoteleiras. Nos Açores vai havendo alguma oferta deste tipo, de qualidade, quase sempre propriedade de estrangeiros.
1. No Pico
Para comer: Canto do Paço (Prainha); O Ancoradouro (Madalena).
Para dormir: L' Escalade de l' Atlantique (um precioso turismo de habitação com poucos quartos, decorado e gerido por um casal de belgas, na Piedade); Casa das Cagarras (casa particular que se aluga inteira ou por quartos, entre a Prainha e Sto. Amaro)
2. Em S. Miguel
Para comer: Colégio 27 (Ponta Delgada. Um sofisticado e excelente restaurante de cozinha internacional, propriedade de suecos)
Para dormir: Convento de S. Francisco (Vila Franca do Campo. A promessa de alguns dias inesquecíveis num convento muito bem recuperado, com uma vista magnífica); Estalagem Senhora da Rosa (Fajã de Baixo, Ponta Delgada. Uma óptima relação preço/qualidade, cosy, central e de muito bom gosto)
"Onde vos retiver a beleza dum lugar,
há um Deus que vos indica o caminho do espírito."
(Natália Correia)
A magia continua, e parece que estas ilhas reservaram para nós as suas melhores surpresas. Chegámos ao Pico no dia do eclipse e recebeu-nos uma lua cheia de encantar qualquer mortal, a que a sombra do sol acrescentou uma bem visível dentada. Também o mar se encapelou - em nossa honra? - naquilo a que chamam por aqui as "lavadias", marés vivas que trazem nova vida e lavam as ilhas de todas as impurezas. A "piscina" natural onde tomamos banho (uma plataforma de cimento numa pequena baía da costa recortada, onde uma escada escavada na rocha e uma corda nos ajudam a sair do mar, depois de mergulhar), esteve bastante agitada nos primeiros dois dias.
Foi no meio destes prodígios que atravessámos o Canal que Nemésio imortalizou (mesmo em calmaria, merecedor de respeito) em direcção ao Faial. Foi uma travessia épica, entre vagas de altura considerável e de uma beleza rara, que se quebravam à saída da barra contra os ilhéus da Madalena, num espectáculo inesquecível. Impunha-se, mais do que nunca, um bom gin tonic no Peter, que, verdade seja dita, acabou por transformar-se em dois ou três. Lá deixámos, como manda a tradição, mensagens escritas para viajantes amigos que nos sucederão nestas paragens e por lá hão-de passar a reclamá-las. Na marina da Horta tivemos ainda um presente inesperado: a chegada de um magnífico espadarte de quase
Hoje a alvorada foi às sete da manhã, para o embarque num bote de borracha com destino ao mar aberto entre o Pico, Faial e S. Jorge. Objectivo: avistar baleias e golfinhos. A neblina da manhã deu à viagem o cunho sobrenatural que nos tem acompanhado sempre por aqui. E a sorte continua também connosco, já que quatro grandes cachalotes nos brindaram com a sua presença à tona de água, a poucos metros de distância, seguida de um mergulho vertical que deixou à nossa vista as enormes barbatanas caudais. Faltou ao encontro a grande baleia azul – o maior animal do planeta – que só aparece nestas águas entre Abril e Junho, migrando depois para outras paragens. Depois das baleias, navegámos por algum tempo escoltados por uma colónia de cerca de trezentos golfinhos, tão amigáveis e habituados a estas visitas que saltavam alegremente à volta do barco, sem qualquer medo ou timidez. No regresso a terra, já se desenhava em volta do Pico aquela curiosa formação de nuvens que às vezes configura um chapéu em torno do cume, a
Depois de todas estas emoções esperava-nos um merecido jantar no Canto do Paço, o melhor restaurante da Prainha, que nos foi muito recomendado e teve que ser marcado logo no dia em que chegámos. Muito bom, realmente.
E por aqui se detém esta crónica, por hoje. Na próxima vez que vos escrever, já estaremos em S. Miguel. Esta foi a nossa casa no Pico:
Chega-se e nem por um segundo se duvida: abriram-se para nós as portas de um paraíso perdido, de um mundo de brumas e de lendas suspensas no tempo. Somos os atónitos visitantes a quem foi dado o supremo privilégio de conhecer - pelo menos uma vez na vida - um dos últimos redutos mágicos do planeta. Sim, estamos na Atlântida.
Numa ilusão de realidade temporal, bebemos um gin tonic no Peter, mergulhamos nas mornas mas tormentosas águas das piscinas naturais, petiscamos um peixe fresquíssimo ou passeamos pelas estradas debruadas a hortenses. Para não perdermos o pé, agarramo-nos desesperadamente às tábuas de salvação daquilo que dominamos, dizendo que o que nos amolece é o inacreditável grau de humidade, o que nos confunde é o ócio, o que nos deixa mudos é o estranho silêncio. Mas não nos iludamos: o que verdadeiramente nos subjuga, reduzindo-nos à condição de deslumbradas formigas, é a força esmagadora da Natureza, em todo o seu esplendor. É sermos tocados por uma espécie de benevolente sorriso de uma entidade infinitamente maior do que nós, que nos permite, magnânima, levantar a ponta do véu dos seus mistérios insondáveis e penetrar na antecâmara - não mais do que na antecâmara - do seu reino de glória.
Vir aos Açores é aprender uma lição sobre o assombroso poder da Terra-Mãe: disfruta-me, admira-me, maravilha-te, mas nunca te esqueças de que amanhã tudo isto que vês poderá desaparecer para sempre, tal como surgiu aos teus olhos.
Vir aos Açores é entender a nossa verdadeira dimensão. O negrume recortado da lava basáltica, o luminoso verde que cobre cada centímetro de terra, o azul profundo do atlântico, não são mais do que engodos. Esta espantosa beleza não é gratuita: o preço é vermo-nos ao espelho da nossa insignificância.
... já volto!
(se puder, vou dando notícias de lá)
Já que estou em maré de pensar em viagens e aventuras (a verdade é que não preciso de muito para "me mudar" para esse território dos pensamentos...) recomendo mais dois blogues interessantes de seguir, para quem, como eu (pelo menos neste momento) não pode fazer a trouxa e... zarpar.
Um deles é o dos dois portugueses - Clara Piçarra e Miguel Sacramento - que estão a dar a volta ao mundo, não em 80 dias mas em 365, e são autores da fotografia e texto do meu último post. Chama-se Histórias do Mundo. O blogue conta, a par e passo, as aventuras e descobertas que vão fazendo ao longo desta fabulosa experiência, integrados num grupo de jovens de vários países.
O outro, não menos interessante, chama-se simplesmente Miguel Arrobas. O Miguel Arrobas é filho de amigos meus e propõe-se, neste blogue, contar-nos a sua espantosa odisseia pessoal: a travessia - a nado! - do Canal da Mancha, que irá fazer com um amigo. Os preparativos estão ao rubro e vai valer a pena acompanhá-lo nesta aventura, tenho a certeza. Fico a torcer, Miguel!
Curiosamente, em ambos os casos foram escolhidos slogans retirados de letras de canções portuguesas, como incentivo e lema. No primeiro, temos Jorge Palma:
"Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar,
enquanto houver ventos e mar a gente não vai parar..."
No segundo, Mafalda Veiga:
"Onde só chega quem não tem medo de naufragar"
Que se inspirem e nos deliciem, a nós que ficamos em terra.
E aqui está a reportagem com os dois aventureiros:
Encontrei este belíssimo texto no Miniscente, do Luís Carmelo. A qualidade é a de sempre, no que diz respeito ao que por ali se lê. Mas estas palavras tocaram-me especialmente, por tê-las descoberto hoje. Ofereço-as a dois amigos que estão de partida para África, ficando a torcer (com uma pontinha de inveja, confesso) para que se sintam exactamente assim enquanto estiverem por lá.
"Primeira Respiração"
E porque na vida, na verdade, "nada se perde, tudo se transforma", aproveito este regresso antecipado para saudar o novíssimo blog de outro querido Amigo - o Adeus, até ao meu regresso.
Recomendo que o sigam com atenção, porque promete: o JB escreve sumptuosamente, e decidiu presentear-nos com a sua especialíssima experiência africana, num país de que muitos fugiriam a sete pés, se pudessem - o Zimbabwe.
Para ele, e também para mais um querido Amigo - o nosso (bravo...) embaixador em Harare, João da Câmara - os meus votos de que tudo corra pelo melhor. Aqui estarei, fiel e ansiosa pelas vossas notícias...
Bem-vindo à blogosfera, JB!
Esta é a história de um fotógrafo fotografando outro fotógrafo. As imagens que se seguem foram feitas pelo holandês Hans van der Vorst, no Grand Canyon, Arizona. As palavras são do próprio. A identidade do segundo fotógrafo é desconhecida.
«Assim que o vi, não consegui tirar mais os olhos dele: estava completamente hipnotizado com aquele tipo, de pé sobre aquela rocha solitária no Grand Canyon.
O Grand Canyon, naquele sítio, tem
1. Como raio é que ele trepou para ali?
2. Porque não fotografar o pôr-do-sol da rocha à sua direita, que é perfeitamente segura?
3. Como é que ele vai sair dali?
Quando o sol finalmente desapareceu no horizonte, ele arrumou calmamente o equipamento e, com uma única mão livre, preparou-se para o salto. Tudo isto durou cerca de 2 minutos. Neste ponto, o homem já tinha a total atenção da pequena multidão que ali estava, suspensa dos seus gestos.
Esse foi o "point of no return". Depois disso, saltou...
Aqui vemos como a rocha adjacente é mais alta, pelo que ele tentou aterrar no degrau abaixo, claramente curto e inclinado, tentando usar a mão livre para agarrar-se à rocha.
Chegámos ao fim da história.
Olhem com atenção para o homem: tem uma máquina fotográfica, um tripé e ainda um saco de plástico, tudo isto ao ombro e na mão esquerda. Só a mão direita está livre para agarrar a rocha, e o peso do equipamento é um problema adicional.
Esta última fotografia foi tirada no preciso momento em que a mão e o pé direitos chegam à rocha, quase por milagre. Entre as duas rochas há um fosso de
Perante os nossos olhos incrédulos, o homem equilibrou-se, atirou o equipamento para cima, depois trepou para o degrau de cima e foi-se embora. Provavelmente para uma casa de banho, para trocar de calças... eu, pelo menos, tive que fazê-lo, e só estava a ver!»
(Nota: recebido por mail em inglês, e traduzido por mim)
Mal cheguei, atirei para longe tudo o que me lembrava as rotinas diárias: roupas justas, sapatos, maquilhagem, enfeites, carteira e afins. Instalei-me, enfiei uma jellabah, única roupa admitida nos próximos dias (excepto um fato de banho, se o tempo permitir), e saí, descalça, a explorar o paraíso. Caminhei durante duas horas, os pés dentro de água, sem outra companhia que a das ondas mansas e da areia morna. Não pensem que exagero, isto é mesmo um oásis perdido. Há um único rasto de passos humanos na praia, depois do meu primeiro passeio: o meu. Há solidões que são um luxo.
Sinto-me em casa, acolhida por toda esta beleza. Mas acontece-me isto em qualquer lugar do mundo onde vá: depressa dispo, sem oferecer resistência, todas as peles que me separam do que me rodeia, e em pouco tempo me torno uma nativa, diluindo-me na paisagem. Aqui, foi muito fácil: passaram poucas horas e sou uma concha.
Deixo-vos com Oasis, uma canção linda do meu querido Pedro Guerra, que não ouvia há muito tempo. Até amanhã!
Los oasis son siempre espejismos
hay pasiones que niegan el cielo
cuando me quisieron
yo no quise tanto
y cuando he querido
no siempre quisieron
Las palabras no solo definen
hay canciones que guardan misterios
cuando me llamaron
no escuché el mensaje
cuando yo lo quise
no me respondieron
Poco, mucho
algo, casi, casi nada
no siempre se cruzan
todas las miradas
Hay distancias que guardan caricias
y lugares de pocos senderos
mis señales de humo
no encontraron ojos
y llegaron cartas
cuando estaba lejos
En el mar hay tesoros y peces
en el río hay arena y secretos
cuando lo quisiste
no salió la luna
cuando no esperabas
te llovieron besos
(Nota: Tirei esta fotografia à chegada, da janela do meu quarto. Os dois barcos de recreio que se vêm nela pertencem a alguém que só vem ao fim de semana. Até lá, são só uma nota decorativa no azul e verde que vejo daqui.)
Bom, chega de política e de tristezas: Madrid tem sempre uma oferta de Arte invejável, e foi sobretudo por isso que lá fomos desta vez. Com um objectivo específico, antes de qualquer outro: ver a exposição de pintura de Paula Rego no Centro de Artes Reina Sofia. E, neste capítulo, tudo o que eu possa aqui dizer ficará a anos-luz da realidade. Integrada na V Mostra de Cultura Portuguesa, a que Madrid dedica uma série de iniciativas representativas das várias artes em Portugal - música, pintura, fotografia, azulejaria, etc. - a exposição comemorativa de toda a carreira de Paula Rego é a mais completa que foi feita até hoje e é, positivamente, de cortar a respiração. Ocupa toda uma ala do 1º andar do Rainha Sofia, e abrange desde as primeiras experiências académicas da pintora (já geniais, aliás) até aos´trabalhos executados no passado ano de 2006. Quase todos os quadros-ícones da sua obra lá estão: "a mulher-cão", "a família", "o baile", toda a série das "avestruzes-bailarinas", a série sobre o aborto clandestino, etc. São, na sua maioria, quadros de enormes dimensões, que têm um impacto completamente diferente (como é natural) daquele que exerce sobre nós uma reprodução vinte vezes menor, por muito boa que seja.
No meu caso, confesso, foi a total rendição à pintora: além da prodigiosa mestria técnica (unanimemente reconhecida pelos maiores críticos de arte mundiais), está patente, na obra desta mulher, um profundo e impressionante conhecimento da natureza humana, nas suas facetas mais sórdidas mas também nas mais redentoras. A série de pequenos desenhos denominada genericamente "misericórdia", fez-me saltar lágrimas dos olhos, de tão comovente. São cenas de entre-ajuda humana, nas situações mais difíceis da vida de todos nós: aquele conceito a que os cristãos chamam vulgarmente "caridade" e que tão desvirtuado e mal interpretado tem sido ao longo dos tempos. O que mais impressiona nelas é o próprio tema, raramente abordado em pintura. Mas, se há adjectivo que possa aplicar-se à obra de Paula Rego, é mesmo "incómoda". Não só pela violência de algumas imagens, retratadas sem fantasias nem romantismos de qualquer espécie, mas sobretudo pela coragem de abordar temas que não são considerados "estéticos". Paula Rego pinta a realidade nua e crua, pungente e grandiosa na sua complexidade: as figuras femininas são robustas e quase rudes (gente de trabalho, comum, e não modelos de perfeição), mas tão expressivas quanto um ser humano pode ser. A ténue linha de divisão entre seres racionais e irracionais está bem expressa na utilização de animais em poses e situações humanas, a mostrar-nos como estamos todos tão próximos da bestialidade e, por outro lado, como alguns animais se aproximam ou até ultrapassam as nossas so called "melhores qualidades".
Magnífica experiência, é o que tenho a dizer. E de tal maneira forte que, ao subir para ver Picasso (que está no andar logo por cima em toda a sua pujança, inclusivamente com o impressionante Guernica), ficamos perdidos, sem conseguir fazer a mudança de registo e sem conseguir, sequer, aderir ao mestre (e até a Dali, que lá está representado também e que é um pintor que eu adoro). Não nos é possível desligar logo do impacto poderoso de Paula Rego, e esse facto já diz muito sobre a qualidade da sua obra. Volto a dizer: rendi-me incondicionalmente à pintora, embora mantenha que não aguentaria olhar todos os dias para a maioria dos seus quadros e que, só por essa razão, não os queria ter na minha sala. São espelhos incómodos, que nos deixam sem pele. Mas que demonstram bem o poder da arte, quando é boa.
Enfim, a exposição não só vale a pena como é absolutamente obrigatória, na minha opinião. Se lá puderem ir, não deixem de fazê-lo. Ainda estará por lá até ao fim do ano. E se não puderem mesmo, então não percam a esperança: o Museu Paula Rego será uma realidade a curto prazo, em Cascais.
Um pormenor importante: aconselho vivamente o uso do audio-guia (embora não exista em português!!!), que explica criteriosamente as histórias que estão por detrás dos quadros principais, as mudanças de fase e de motivações, e que inclui até explicações da própria pintora. É completamente diferente ter este apoio, sobretudo nas figurações menos óbvias.
Mas nem só de arte vive o homem: embora não tenha dado tempo para o flamenco - estava programada uma visita ao famoso Café de Chinitas, decorado pelo português Duarte Pinto Coelho - a gastronomia é sempre um must em Madrid: não deixámos de cenar perdiz no antiquíssimo Sobrino de Botín (o restaurante mais antigo do mundo, segundo o Guiness), onde continua a comer-se maravilhosamente e onde os preços, curiosamente, não aumentaram muito. O ambiente é fantástico, os empregados são eternos, a comida insuperável. Está sempre completamente cheio, é uma sorte conseguir uma mesa sem reserva. Tivemos sorte.
O mesmo não se pode dizer das esplanadas da Plaza Mayor, onde almoçámos mal e por um preço astronómico. Os turistas tomaram posse dos velhos restaurantes e inflaccionaram os preços, a um ponto ridículo para a qualidade actual. Salvou-nos o Jose Luis, na Castellana, cujos solomillos e o revuelto de gambas e asparragos verdes, ao jantar, nos fizeram esquecer completamente o desaire do almoço.
Resta-me dizer que o belo sol de Madrid nos permitiu passear e andar por las tiendas (não resisto aos sapatos, em Espanha...), e por isso fizemos quilómetros a pé. Tudo está bem quando acaba bem, e só foi pena que tivesse acabado tão depressa. Mas hei-de voltar, quantas vezes possa, a Madrid. Essa é uma das poucas certezas que tenho.
(Paco de Lucia - Entre dos Aguas)
Nota 1: Aqui fica o fabuloso som de Paco de Lucia, que um dia ouvi ao vivo (precisamente no Café de Chinitas), há muitos anos.