Sábado, 30 de Maio de 2009

O improvável jogador

José António Barreiros
 
O dia terminava. Sabia-se porque no interior de cada sala esconsa projectava-se já a penumbra, devorando a cada objecto o seu pormenor. Era a hora em que as almas anoiteciam. Apenas os sons se tornavam mais nítidos, mais próximos, mesmo quando incómodos. No vazio de uma esquálida varanda, envolvendo-se na sua incerta sombra, fazendo do seu corpo companhia, estava um cão. Não era fácil saber se ainda existia para alguém, cuja alma doesse por ele estar ali. Domingo voltariam todos, o mundo dos humanos. Água, comida para uns dias e a ausência de certezas, eis o que tinha para enfrentar aquilo que a vida lhe trouxesse. Sexta-feira todas as contingências lhe pareciam, porém, possíveis. Ninguém o avisara do que poderia suceder. O silêncio era a sua forma de aguardar o regresso da esperança.
publicado por Ana Vidal às 07:30
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Sábado, 23 de Maio de 2009

O improvável jogador

José António Barreiros

 

 

Uma lasca de madeira cravara-se-lhe no espaço ínfimo que medeia a unha e a carne do dedo grande do pé. Uma minúscula falha rasgava caminho por entre o pequeno fio de um morno sangramento.

Tudo se conjugou em segundos para que se abatesse a insignificância do que era, ante a derrocada das convicções, quanto ao que poderia ter sido. Não tanto a presença da dor naquele local longínquo de si e que, no entanto, era ainda a sua pessoa; um pouco mais além que fosse e estaria onde, terminado o pé, começava tudo o que já não era ele: o mundo rastejante dos outros. Nem sequer era a dimensão inesperada do facto de doer, esse estilete agudo, que o andar tornava intermitente queixume: porque um esgar míope torna em incómodo o que podia ser a essência da insuportabilidade. Foi talvez a fatalidade embaraçosa de não poder descalçar o sapato e a circunstância de, descalçando-o, o bojudo ventre lhe impedir a flexão de se dobrar que precipitou tudo. Tinha chegado ao estado de haver no seu corpo partes inteiras inalcançáveis. Perdera, enfim, o domínio de si. Nesse momento convenceu-se de que não se pertencia. Foi então que ela o viu. Com um gesto doméstico, trivial, vindo de uma vida de complacências e de renúncias a ter razão, olhando-o fixada naquele ponto abstracto que era, afinal, ignorá-lo, perguntou-lhe: «porque não apertas os sapatos, querido? Assim, ainda corres o risco de cair».

 

publicado por Ana Vidal às 09:29
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Sábado, 16 de Maio de 2009

O improvável jogador

José António Barreiros

 

 

Les jeux sont faits

Talvez fosse o brilho gorduroso da testa reflectido no bojo metálico da feérica máquina que o ladeava, rolando frutos e tlins, ou o sapato esquerdo mordendo-lhe o pé para lembrar que esse era maior do que o outro, desde pequenino. Ou o vago cheiro acre, exaurido o desodorizante, meio perfume barato impregnado em lânguidas carnes, disponíveis. Talvez fosse cada uma das minudências remanescentes daquela hora sombria em que os corpos são vultos e as vozes sussuros. O ronronar sonolento do ar condicionado, enfim audível na silenciosa noite e o tilintar de moedas caindo num chuveiro de estridente alegria. Ou o duvidoso olhar injectado de promessas entumescentes de uma qualquer apátrida de aluguer e já sobravam poucas, os táxis a esvairem-nas para quartos de turno rápido, aviando ilusões.
Talvez fosse isso tudo e as olheiras do croupier. Àquela hora em que já só ficam os que terão de sair sozinhos, restava o que o vício deixa para trás, passadas as enganadoras luzes do entusiasmo.
Foi então que ela entrou. Esfrangalhava-se para um dos lados, como mulher que perde do sapato um salto, e era mulher e em altíssimos saltos, um mundo em fêmea alçado em palafitas. Apostava essa noite a melhor das suas sortes. Regressara ao campo de batalha em que os amores se jogam a dados, as paixões ao azar de uma roleta. Faltava-lhe agora quem a escoltasse, o precário companheiro ou o permanente marido, contrastante em magreza e superlativo em ademanes, arauto e pregoeiro, rebocador na hora de recolher, o hálito turvo, os olhos marejados de sombras.
Sentado no seu canto, empinado na sua girafa, as pernas em arco, ele olhou-a, reconhecendo-lhe anos de distância e a razão da ausência. Estavam gastos. Talvez fosse o cabelo queimado à força de tintas, o seio tombado à força do seu peso. Talvez fosse a vida devorar a beleza cuspindo os caroços da fealdade. Não sabia.  Soube sim que apostou tudo o que tinha essa noite, o corpo e a alma, a memória e a imaginação. No tapete verde do desejo, esgotaram-se-lhe as fichas. Ao sairem, a menina do bengaleiro fez de conta que aquele instante não existia. As luzes apagavam-se, mortiças, preparando-se para a sonolência tardia, na esperança do dia seguinte e para a monotonia do igual.

 

 

publicado por Ana Vidal às 09:30
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Sábado, 9 de Maio de 2009

O improvável jogador

José António Barreiros

 

 

O empate contínuo

 

Há um homem sentado a uma mesa que joga contra a probabilidade de ganhar. Anula-se em cada momento, ultrapassa-se em todos os lances. A vida é para si, na lógica do xadrez, a oportunidade do sucesso. Um dia defronta um temível adversário, aquele que lhe conhece os secretos pensamentos, o que adivinha o momento seguinte àquele instante em que ambos estão. Sozinho na reclusão de uma prisão, resto de uma vida sem companhia, produto de um sentimento sem motivo, esse homem, síntese de todos os homens, exemplo de tantos homens, decide jogar contra si. Como num efeito de espelho, projecta-se e observa-se, estuda-se e atreve-se. No egoísmo da sua acção devota-se a caçar o ilusório companheiro, devorando-lhe, uma a uma, todas as partes do seu vício. Há um homem pervertido pela posse, possuído pelo desejo de ter. Num dia aziago, o demónio da má fortuna perde-o no infinito tempo, derrota-o no definitivo espaço. Aprendi com ele: não jogues contra ti, perdes sempre quando ganhas.

 

 

publicado por Ana Vidal às 11:44
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