Quando penso no que foi para mim o dia 25 de Abril de 1974 não posso deixar de esboçar um sorriso, entre divertido e envergonhado. É que esse dia, fulcral para a minha vida futura - e para a de todos nós, de uma forma ou de outra - foi vivido por mim como uma alucinante ficção, uma aventura inesperada numa qualquer twilight zone que eu desconhecia em absoluto, conduzida por um guião que podia ter saído da pena dos Monty Python. As razões desta alienação? É simples: em minha casa não se falava de política, pelo que eu e as minhas irmãs estavámos completamente a leste do paraíso. Aprendi no curso intensivo das ruas, da rádio e da televisão, nas semanas que se seguiram, tudo o que até aí me fora ocultado. Mas no "dia D", confesso, não percebi nada de nada, a não ser que alguma coisa muito estranha se estava a passar à minha volta. E gostei da confusão, da alegria das pessoas, como qualquer adolescente que vê um turbilhão de novidades agitar a rotina, ainda que elas pareçam absurdas.
Começou logo de manhã, com a chegada ao liceu: os muros exteriores estavam pintados com palavras escritas a encarnado, em letras garrafais. Como não sabia o que queriam dizer, achei que era uma língua estrangeira. Afinal, as palavras eram PIDE (abaixo a...), FASCISMO (não ao...), etc. Depois seguiu-se a prisão de um contínuo (por sinal o que mais detestávamos), levado por militares que sorriam para nós e nos faziam sinais esquisitos com os dedos (o V da vitória, provavelmente). Não houve aulas todo o dia e acabámos por voltar para casa por recomendação explícita da minha mãe, que nos mandou buscar no fim da manhã. Seguiu-se a mais delirante programação televisiva de que tenho memória: bocados de episódios de séries americanas já desaparecidas, alternando com músicas desconhecidas e tudo isto permanentemente interrompido por uns barbudos vestidos de camuflados verdes e de metralhadora a tiracolo, que liam nervosamente uns "comunicados" em folhas de papel amarrotadas, com ar circunspecto. Apelavam à calma e falavam em grandes mudanças, repetindo à exaustão palavras como "liberdade", "ditadura", "povo", etc. Eu estava calmíssima (bendita inconsciência!) mas muito divertida com tudo aquilo. O dia acabou com toda a população lá de casa colada ao televisor e à telefonia: os meus pais sérios, numa tensão controlada, a minha avó assustadíssima, as criadas (sim, tínhamos "criadas", peço desculpa...) aos gritinhos histéricos por verem tantos magalas por todo o lado, e ainda mais ignorantes do que se passava do que nós, se é que isso era possível.
Os meses que se seguiram foram trepidantes, e quase tudo o que eu tinha como garantido até ali, deixou de sê-lo e mudou irreversivelmente. Para muito melhor, sei-o hoje. Mas a verdade é que a minha geração foi criada e educada para habitar um mundo que lhe desapareceu debaixo dos pés de um dia para o outro. Teve de apagar toda a matéria dada e seguir em frente, com nova cartilha.
(também no Delito de Opinião)
Nunca tive o mais pequeno jeito para "caçar" um bom partido.
Mas não me queixo... a verdade é que sempre preferi um mau inteiro.
(a propósito de uma pequena provocação do meu vizinho Espumante...)
Quase a chegar a casa, de regresso de um jantar simpático em que bebi dois ou três copos de vinho (nada de especial a quantidade, que da qualidade não posso dizer o mesmo), deparei-me com uma aparatosa operação stop, na rotunda do Ramalhão. Dez ou doze carros da polícia a mandar parar todos os carros, sem apelo nem agravo. Não escapei à regra e encostei, contrariada. Estou constipadíssima e a vontade de chegar a casa e meter-me numa cama quentinha era enorme.
Depois de mostrar todos os documentos - tudo em ordem, felizmente! - o agente "convida-me" a sair do carro para fazer o teste do balão. Ainda pensei dizer-lhe que, se o balão era de whisky, para mim era com muito gelo... mas calei-me a tempo, ao olhar para a cara de pau do meu "carrasco". Não me pareceu que achasse muita graça e a verdade é que eu não estava em situação de provocar más vontades.
Nunca tinha feito um teste do balão, por isso fui fazendo perguntas à medida que caminhava, gelada e a tossir, pela beira da estrada (em Sintra, à noite, já se nota bem que estamos a caminho do Inverno). Sem certezas quanto ao nível de alcoolemia que o meu sopro acusaria, fui arquitectando uma forma de escapar a um resultado imprevisível. Não sei até que ponto o vinho que tinha bebido, somado a um levíssimo bife grelhado só com legumes e dois ou três quadradinhos de fruta, seria motivo de problema. Just in case, fui falando da minha terrível constipação (verdadeira e a piorar, a cada minuto fora do carro) e dizendo que tenho asma (uma descaradíssima mentira), pelo que não sabia se seria capaz de soprar com força. Dito e feito: foram três as tentativas falhadas de sopro, sem "conseguir" encher os pulmões de ar e, muito menos, expeli-lo com o vigor de que a maquineta precisa para dar algum veredicto. Tudo inconclusivo. Pedi desculpa, tossi ainda mais e disse que estava a ficar com muito frio, e que era melhor ele deixar-me meter no carro da polícia para continuar a fazer o teste. Olhou para mim, escandalizado com o abuso do pedido, e respondeu-me com um seco: "Não temos ordens para deixar entrar pessoas no carro". Nova tentativa, nova frustração: o meu sopro não apagaria nem uma vela de bolo.
Com uma fila de candidatos atrás de nós, o guarda acabou por desistir de mim e mandou-me embora, irritado. Ainda lhe ouvi um resmungo mal humorado para um colega, mas fiz de conta que não dei pelo desabafo. Estava safa. Cheguei a casa gelada e a tossir (agora sem fitas), mas sem multa. Talvez o balão não tivesse acusado nada de grave, mas nunca se sabe.
E fiquei a pensar que só uma mulher faria isto, pela simples razão de que só uma mulher não se importa nada de fazer-se de parva perante a autoridade. Se é um estatuto de que já temos fama, há que tirar dele alguma vantagem. Valha-nos isso. A última a rir é quem ri melhor. Isto se não tiver apanhado uma pneumonia, entretanto...
É estranho. É muito estranho que, em quase um ano de "bloguice" nesta Porta do Vento, eu não tenha aqui trazido mais do que uma ou duas vezes uma das minhas maiores paixões musicais de sempre: Elton John. É que o acho genial, tão genial que o ponho em pé de igualdade - digo-o sem qualquer complexo ou medo de exagerar - com outro génio: Mozart.
Mais: se eu acreditasse na teoria da reencarnação, teria a certeza de que Elton John é uma segunda pele do Mestre austríaco, tantas são as semelhanças que lhes encontro: para além da genialidade das composições (a de cada um deles tem que ser lida à luz do seu tempo), vejo-lhes a mesma excentricidade, a mesma frescura, a mesma irreverência, a mesma alegria quase infantil, a mesma necessidade de aplauso, o mesmo sentido de humor, o mesmo gosto da provocação e da brincadeira.
E acho que o próprio Elton John se sente herdeiro de tudo isso, ainda que o não confesse. A prova? O traje que escolheu para sua a actuação neste memorável concerto australiano, acompanhado de uma orquestra "à séria", que eu ouço no carro numa perigosa e alucinante concentração de decibéis. Recomendo o exercício a quem quiser começar o dia (ou acabá-lo) de maneira estimulante.
Escolhi o tema "Sorry seems to be the hardest word" - para mim, uma das canções mais bonitas e mais tristes que já foram escritas - que considero o seu Requiem para um amor, tão pungente e dramático como o maravilhoso Requiem de Mozart. Aqui fica a minha homenagem, com um inexplicável atraso, a um génio da música que me acompanha há muitos anos. Digam lá se é possível fazer melhor do que isto...
(Nota: é pena o som, que não é o melhor)
Todos nós temos uma praia. A "nossa praia". Uma espécie de mundo encantado, perdido no tempo, onde estão guardadas, intocáveis, as nossas mais doces lembranças da infância e da adolescência. A minha é, sem dúvida, o Baleal. Estive afastada dela, fisicamente, durante anos. Mas o espaço que este lugar especial teve sempre no meu coração nunca foi ocupado por nenhum outro. Por qualquer razão que desconheço - há forças subterrâneas que não têm explicação simples, e são mais importantes do que pensamos - o Baleal voltou a tornar-se um apelo fortíssimo na minha vida. Sinto-lhe, mesmo de longe, o eterno cheiro a maresia, o vento cortante das madrugadas, a extrema brancura da areia finíssima. Cinco sentidos alerta, à espreita das memórias. Porque todas as velhas memórias se corporizam neste lugar mágico, onde o tempo teima em não passar.
Ando há muito tempo para escrever sobre o Baleal. Mas a minha irmã Madalena descreveu-o assim, e eu nunca o faria melhor. Convido-vos a ler esta declaração de amor à minha praia, à nossa praia de infância:
A Ilha do Baleal é um daqueles sítios alcançados por bafo divino em dia de suprema inspiração, dona de uma beleza natural que, além de absolutamente estonteante, é originalíssima na costa portuguesa (digo eu, que não a conheço toda), e isto só do ponto de vista geográfico e não do resto (ao dito resto iremos, a seu tempo). A Ilha, que não o é, sê-lo-ia quase se não estivesse ligada ao “continente” por uma língua de areia com duas praias – e aqui começa a originalidade, mas nem por sombras se esgota – que se enfrentam, mais que se admiram, mesmo em frente uma da outra.
Nós, os nativos, insistimos em chamar-lhe Ilha, talvez porque há muitos anos quem a frequentava lembra-se bem de chegar ao Redondo e ter que esperar que a maré baixasse para poder atravessar, pois a maré cheia juntava as águas até quase se perder o pé, ou pelo menos até tornar perigosa a travessia, por causa das correntes fortíssimas formadas pela junção das duas águas. O que, aliás, acontece ciclicamente, e é só mais uma das suas originalidades: a Ilha comporta-se como se tivesse vontade própria, transforma-se quando lhe dá na gana, renova a sua imagem, redefine os seus caminhos, o tamanho das suas praias, a quantidade da sua areia, a altura das suas rochas até quase à véspera familiares,provavelmente para nos confundir, nos encantar ou simplesmente nos fazer reapaixonar pelas suas formas renovadas.
Nega sistematicamente – ou não fosse ela um espírito livre – todas as transformações feitas por mão humana, imperfeitas por definição e desígnio divino, como o famigerado pontão para passagem de carros, espécie de cicatriz de uma operação mal conseguida, quase todos os anos reparado porque o mar o enche de areia ou porque lhe tira tanta que lhe faz perigar os alicerces, como se a própria Ilha o rejeitasse como corpo estranho, coisa de tal maneira óbvia que nós, míseros mortais e pouco sabedores dos mistérios da natureza, não alcançamos à primeira vista. Ou talvez porque, no fundo, desejamos que ela realmente venha ser uma ilha perdida nas brumas, inacessível aos milhares de veraneantes atraídos como mariposas pelo seu brilho.
De um lado, a ilha oferece-se ao continente, generosa na fartura das suas praias gémeas – falsas – uma de águas calmas mas perigosas, a outra de águas revoltas e correntes fortes mas previsíveis. Como a mente humana, aliás: toda a Ilha é uma analogia. E ainda nos oferece mais duas praias, uma escondida do primeiro olhar, por ser reduto antigo de barcos de pesca e por definição segura, protectora, aconchegante: a dos Barcos; e outra tão pequena que torna admirável o facto de ter sido baptizada: a das Cebolas, ainda que o seu nome não seja nem remotamente poético.
Do outro lado, aberta ao azul-cobalto, a Ilha mostra a sua face rebelde, gigantesca e sempre agreste, menos moldada às vontades humanas e imune a invasões. É o lado oceânico, com vista para as Berlengas, sua congénere longínqua e ao mesmo tempo ali tão perto, e para os Farilhões, ilhotas desertas e heliporto exclusivo de pássaros marinhos, a eterna inveja da nossa Ilha de alma eternamente selvagem. Ela aponta-lhes a sua proa cortante e abrupta, como se quisesse levantar âncora, imitando penínsulas saramaguianas na desesperada tentativa de se lhes juntar. A prová-lo, a Ilha das Pombas, esta com I maiúsculo por direito próprio, rochedo virgem e rebelde que fugiu das saias da mãe, conseguiu desertar da cobiça humana e buscar uma vizinhança composta exclusivamente por seres marinhos, ou quando muito alados, e fez-se ao mar há já uns bons milhares de anos.
É orgulhosa, a nossa Ilha. Não nos quer lá – ou não nos brindasse com tempestades quase de granizo em pleno estio, e só aos parcos mas persistentes visitantes invernais concede raras manhãs ensolaradas, gloriosas, ainda que gélidas. Parece até que considera esta adoração de que é objecto um contratempo, uma contrariedade temporária de que se verá livre rapidamente – para ela o tempo é efémero e o seu não se mede pela mesma medida que o nosso. Uma vida humana é um décimo de segundo. A memória da geração anterior somada a uma vida de agora não é mais que um suspiro.Talvez nos deixe construir casas porque as pintamos de branco, quem sabe as confunde com velas desfraldadas ao vento e conta com elas para sair mar afora, rumo ao pôr-do-sol...
(Fotografias: Mário Cordeiro)
Não há império maior do que o que se tem sobre os vícios dos outros.
(ABL, in Prazer e Glória)
Pronto, confesso.
Tenho andado a fugir à ideia de avaliar a minha adicção, mas acabei por enfrentar a fera. E convenhamos, há coisas piores...