Sexta-feira, 13 de Novembro de 2009

Expresso do Oriente (2)

O primeiro impacto do Oriente sobre um europeu razoavelmente calejado pode ser descrito como uma verdadeira invasão dos sentidos. De repente, sem pré-aviso, tomam-nos de assalto as cores, os cheiros, os sons e o afago húmido de um calor desconhecido. Tudo é novo e deliciosamente estranho, excitante como um arrepio em noite de Verão. E não falo de praias paradisíacas, com coqueiros e tépidos mares transparentes. Neste caso, quem me abre as portas do Oriente é uma enorme metrópole, com 14 milhões de habitantes e uma arquitectura urbana arrojada.

Mesmo assim, o exotismo impõe-se através de uma natureza indómita, que irrompe por todo o lado sempre que pode. Há zonas de vegetação selvagem em plena cidade e muita, muita água: braços de rio e canais artificiais que substituem ruas, pequenos lagos no centro de condomínios de pédios altíssimos. À primeira vista, e observada da janela de um 17º andar do hotel Le Meridien, dir-se-ia que Bangkok se assemelha a New York. Mas esta perspectiva “aérea” exclui o chão e isso faz toda a diferença, porque é a esse nível que o Oriente se manifesta com toda a sua exuberância: bancas que vendem tudo o que possa imaginar-se, da comida ao artesanato passando por animais vivos; tuk-tuks que rivalizam com táxis (estes, por sua vez, ostentando todas as cores do arco-íris), num um trânsito caótico que só terá paralelo, talvez, em Nápoles; pressurosos alfaiates que fazem provas de fatos Armani em sedas e caxemiras; massagistas que oferecem serviços vários, das terapias com peixes para doenças de pele até à “hot candle massage”, a delícia mais ousada do catálogo. Enfim, uma multidão transbordante e sorridente que nos recebe de braços abertos, com uma surpreendente hospitalidade quase naif ainda, depois de anos e anos de invasão turística ocidental.

É claro que o meu hotel, de uma estética imbatível, ultra-moderno e requintado em extremo – não é por acaso que existe a expressão “luxo asiático” – se situa, para o bem e para o mal, mesmo em frente da famosa Patpong (quem não se lembra desta rua no filme Emmanuelle?), onde bate mais quente e mais forte o coração de Bangkok. Há um mercado nocturno que todos os dias, religiosamente, aparece às seis da tarde para desaparecer de novo à uma da manhã, num ritual complicado de montagem e desmontagem de tubos e lonas executado por um enxame de vendedores, em tempo recorde.

Quando acaba o bric-a-brac, começa outro mercado: uma oferta variada de espectáculos e serviços eróticos, que começam em plena rua e acabam em primeiros andares pouco recomendáveis, passando pelos bares “de varão” onde mil rapariguinhas - que parecem ter sido clonadas  de um único modelo - exibem os seus (des)encantos.

Sobre isto, uma curiosidade: diz-se que há quatro sexos em Bangkok: as mulheres e os homens ditos “normais”, os Lady boys (homens que se apresentam e agem como mulheres, mesmo durante o dia) e as Tom girls (o inverso: mulheres transformadas em homens, no aspecto e nas atitudes). Para além das fachadas, também uma cirurgia de mudança de sexo custa uns míseros dois mil euros, pelo que a moda está em franco crescimento.

 

 

Depois há a cozinha Thai, deliciosa e saudável. Apaixonei-me sem remédio pelos legumes, os camarões, as limonadas, as mil variedades de arroz, e só das nossas sobremesas tive saudades. E há também o grande mercado de fim-de-semana, tão gigantesco que é essencial andarmos de mapa na mão (distribuído pelos muitos polícias de serviço) para não nos perdermos. Eu perdi-me, mas por algumas antiguidades de cuja idade duvido muito, dada a insignificância do preço.

E há ainda o mercado das flores ao longo do rio, uma experiência sensorial única: lindíssimas coroas e colares de orquídias de todas as cores, para além de uma imensidade de outras flores de nomes desconhecidos. Por sorte, estava em Bangkok na véspera do Grande Festival da Lua Cheia. No dia seguinte, todas aquelas magníficas arquitecturas florais seriam lançadas ao rio numa manifestação de alegria, como tributo às divindades aquáticas.

 

E perdi-me também, mas propositadamente, nas ruas menos centrais de Bangkok. Se há coisa que gosto de fazer é vaguear sozinha pelas ruas de uma cidade desconhecida, sentindo-lhes o pulso e a alma. Foi assim que fui parar a um templo frequentado só por locais (não havia uma única palavra traduzida em inglês, como acontece por toda a cidade). Sentei-me no chão sobre os joelhos e fiquei a observar os presentes, imitando-lhes os gestos – como queimar paus de insenso, por exemplo – na esperança de me diluir no cenário e não perturbar. De repente, todos saíram dali ao mesmo tempo e  eu fiquei sozinha, sem saber muito bem o que fazer a seguir. Preparava-me para ir-me embora quando alguém me tocou no ombro e me convidou, com um gesto, a seguir o grupo. Lá percebi que era um casamento e que me convidavam a fazer uma saúde aos noivos. Acabei por almoçar com eles, “conversando” com gestos e sorrisos porque muito poucos percebiam outra língua que não a sua. Foi uma experiência que não esquecerei.

(cont.)

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publicado por Ana Vidal às 01:56
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12 comentários:
De Luísa a 13 de Novembro de 2009
Só a Ana para se ver inadvertidamente envolvida na aventura de um enforcam… de um casamento local. :-)
É muito expressiva a sua descrição e foi como viajar consigo. Curiosamente, no Oriente, por algumas notas que retive de outros relatos, o que mais me assusta – para além das «favelas» (ou miséria) locais – são os mercados e esse detalhe que refere dos animais vivos, porque me dizem que agora estão vivos e logo estão mortos, à vontade e à vista do freguês. Acho que é por isso e pelo excesso de colorido – ou gente, gente, gente – que o Oriente me seduz tão pouco. Não tanto, pelo menos, como o deserto. ;-)
De Ana Vidal a 13 de Novembro de 2009
Não vi matar nem uma mosca, Luísa, mas acedito que isso exista por lá. Quanto a cores, aromas e calor, tudo é excessivo no Oriente. E essa é, para mim, a grande magia dessas terras.

O deserto tem outro tipo de magia, e também me seduz imenso. Bem acompanhada, de preferência... ;-)
De João Paulo Cardoso a 13 de Novembro de 2009
Atendendo à reconhecida capacidade literária dos viajantes e às mil e umas maravilhas dos locais visitados, a que se acrescentam as fotos e os textos já publicados em reputados blogs, fica a pergunta:

De que estão à espera para editar um livro de viagens?

Beijos e bom fim de semana.
De Ana Vidal a 13 de Novembro de 2009
Um livro de viagens teria de ser muito mais exaustivo, com informações mais completas. Isto são só impressões de viagem, JP. Mas obrigada pela fé, pela parte que me toca.
Bjs
De RAA a 13 de Novembro de 2009
Ela aí está, vizinha, a sua veia de repórter.
De Ana Vidal a 13 de Novembro de 2009
Querido RAA, sempre simpático!
Acho que a tenho, sim. Pelo menos gosto de fazer estas crónicas de viagem.
Um beijo.
De Anónimo a 13 de Novembro de 2009
Também gosto muito da sua escrita.
Obrigada pela viagem.
bom fim de semana.
xx
De Ana Vidal a 13 de Novembro de 2009
Obrigada, xx.
Bom fim-de-semana para si também.
De fugidia a 14 de Novembro de 2009
Estou seduzida pela forma como descreves esta viagem, Ana: por minutos senti-me no meio das cores, dos cheiros (e como eu sou olfactiva!) do calor...
Só um pormenor: bem acompanhada apetece-me estar tanto no deserto quanto em qualquer outro lado, Ana ;-)

P. S. Diário de impressões de uma viagem parece-me bem :-)
(chama-lhe o nome que quiseres, escreve mas é o livro, ora!)
:-D
De GJ a 16 de Novembro de 2009
Temos muitas coisas em comum. A aventura das viagens sem rede, a curiosidade que nos leva por ruas onde só os locais estão, a invasão de mosquitos que nos adora, o entusiasmo perante o exótico das cores e dos cheiros e sabe-se lá que mais:)
E por coincidência, a primeira vez que estive em Bangkok, foi nesta altura do ano e também participei na Festa das Flores, deitando o meu colar de orquideas no leito do rio cumprindo o ritual.
De Catarina a 22 de Novembro de 2009
E o resto? E o resto? Já passou uma semana, e nada! Não há direito...
:-((((((
De violeta a 29 de Novembro de 2009
Adorei a Tailândia espectáculo de cores, cheiros e gentes. sombras furtivas na noite, silenciosas. o famoso thai smile em qualquer esquina, a qualquer altura do dia. o bafon ..misterioso, que nos chama a toda a hora hipnotizador..

beijos da violeta, Ana.
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Adorei a Tailândia espectáculo de cores, cheiros e gentes. sombras furtivas na noite, silenciosas. o famoso thai smile em qualquer esquina, a qualquer altura do dia. o bafon ..misterioso, que nos chama a toda a hora hipnotizador.. <BR><BR>beijos da violeta, Ana. <BR><BR class=incorrect name="incorrect" <a>obrigadomeuamor.blogspot.com</A>

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