Sábado, 1 de Agosto de 2009

Moleskine

João de Bragança

 

Ele tinha 16 e ela 30. Uma ou duas vezes por semana, quando a casa estava no silêncio de quem dormia ou na ausência das rotinas exteriores, o rapaz chegava-se à cozinha para as suas lições de doçaria. Aprendeu tudo o que havia a saber sobre o ponto de cabelo ou o ponto de espadana, o pesa-xaropes e os graus Baumé, a calda de açúcar e a importância da matéria-prima. Por ali estavam uma hora, o Francisco e a Ermelinda, de avental pendurado e olhos no tacho, sentindo a textura,  percebendo a importância da acção rápida, deitando algumas gotas de água fria para baixar a temperatura ao xarope.

No fim da sessão, arrumados os tachos, lavada a loiça e aprendida a lição, a empregada levava o rapaz pela mão, argumentando que ele tinha nódoas na roupa

- ai se a mãezinha vê…

bocados de açúcar na testa e nos olhos

- o menino não pode ir assim para o liceu

camisas desfraldadas e sapatos por engraxar.

E a Ermelinda, com o seu peito forte a querer saltar da farda, as suas coxas rijas, os seus braços habituados à labuta do sol a sol limpava-lhe as manchas de gordura, polia-lhe os mocassins, lava-lhe o rosto. E desapertava-lhe um botão, e mais outro, e ainda outro. E era um beijo curto e envergonhado, seguido de outro mais lânguido e húmido. E era uma mão que lhe tirava um torrãozinho de açúcar do canto do olho e que lhe descia pelo corpo na demanda de outras partes, de outros encantos, de outros estímulos. E eram, por fim, dois corpos nus num quarto dos fundos, enrolados, beijando-se e tocando-se num aroma de sândalo e flores secas numa cómoda de pinho.

O último período do liceu foi assim passado. As notas num crescendo de quadro de honra, as lições de doçaria numa espiral de sucesso de aprendizagem: o ponto de estrada, o ponto assoprado, o ponto de bola mole; o polegar e o indicador humedecidos com água fria para se ver formar o fio; o sulco que se abre no fundo do tacho, a calda que escorre na escumadeira, deixando-lhe uma fina camada. E o prémio caseiro pelo bom cumprimento materializado numa nudez forte, num sol que entra devagarinho a uma hora matinal e que ilumina um seio numa luz finíssima. Há ainda o sândalo que inebria e que é testemunha de um desempenho juvenil cada vez melhor. Afinal, tudo se resume a uma gestão do tempo, da temperatura e do ponto, porque o amor carnal pode ser doçaria da mais fina.

Passaram-me 20 anos, e o Francisco é dono de uma pastelaria afamada, que reclama ter os melhores jesuítas do concelho. Lá dentro, a comandar a equipa, a Ermelinda ainda é imbatível na calda de açúcar. A vida deu-lhe idade e peso, cabelos brancos e olheiras fundas. O rapaz, agora empresário, tem um sócio, o Juvenal, para quem olha de uma forma que revela ternura e cumplicidade, um entendimento que vai além dos prazos de pagamento e da visão do negócio. Por vezes tomo o pequeno-almoço com ele, encostados ambos a um balcão feito num vidro de transparência impossível. Pede sempre uma bica curta em chávena fria e um rissol de camarão.

- Enjoei o açúcar, sabe?   

Então não sei… Conheço-lhe bem a história. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

 

Etiquetas:
publicado por Ana Vidal às 07:30
link
34 comentários:
De Ana Vidal a 1 de Agosto de 2009
Calórica e erótica, João! Feita de delícias várias, ou talvez de delícias que se cruzam e completam, afinal de contas.
Mas fiquei com pena da Ermelinda, condenada a ser mestra de uma arte depois aplicada e treinada num imprevisto Juvenal. Foi por isso que ela engordou, claro: ficou só com a metade calórica do assunto... ainda domina os pontos de açucar como ninguém, mas já não tem com quem dividir o seu ponto de pérola. A vida é injusta...
Um beijo
De JdB a 1 de Agosto de 2009
Nem eu sei se a Ermelinda ter ficado assim - gorda, cabelos brancos e olheiras - foi uma consequência ou uma causa. Mas o Juvenal agradece. Um beijo, chefe

Comentar post

brisas, nortadas e furacões, por


Ana Vidal
Pedro Silveira Botelho
Manuel Fragoso de Almeida
Marie Tourvel
Rita Ferro
João Paulo Cardoso
Luísa
João de Bragança

palavras ao vento


portadovento@sapo.pt

aragens


“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez."

(Jean Cocteau)

portas da casa


Violinos no Telhado
Pastéis de Nada
As Letras da Sopa
O Eldorado
Nocturno
Delito de Opinião
Adeus, até ao meu regresso

Ventos recentes

Até sempre

Expresso do Oriente (3)

Expresso do Oriente (2)

Expresso do Oriente (1)

Vou ali...

Adivinhe quem foi jantar?

Intervalo

Semibreves

Pocket Classic (A Educaçã...

Coentros e rabanetes

Adivinhe quem vem jantar?

Moleskine

Lapsus Linguae

Semibreves

Sou sincera

favoritos

Fado literário

O triunfo dos porcos

E tudo o vento levou

Perfil


ver perfil

. 16 seguidores

Subscrever feeds