João de Bragança
Ele tinha 16 e ela 30. Uma ou duas vezes por semana, quando a casa estava no silêncio de quem dormia ou na ausência das rotinas exteriores, o rapaz chegava-se à cozinha para as suas lições de doçaria. Aprendeu tudo o que havia a saber sobre o ponto de cabelo ou o ponto de espadana, o pesa-xaropes e os graus Baumé, a calda de açúcar e a importância da matéria-prima. Por ali estavam uma hora, o Francisco e a Ermelinda, de avental pendurado e olhos no tacho, sentindo a textura, percebendo a importância da acção rápida, deitando algumas gotas de água fria para baixar a temperatura ao xarope.
No fim da sessão, arrumados os tachos, lavada a loiça e aprendida a lição, a empregada levava o rapaz pela mão, argumentando que ele tinha nódoas na roupa
- ai se a mãezinha vê…
bocados de açúcar na testa e nos olhos
- o menino não pode ir assim para o liceu
camisas desfraldadas e sapatos por engraxar.
E a Ermelinda, com o seu peito forte a querer saltar da farda, as suas coxas rijas, os seus braços habituados à labuta do sol a sol limpava-lhe as manchas de gordura, polia-lhe os mocassins, lava-lhe o rosto. E desapertava-lhe um botão, e mais outro, e ainda outro. E era um beijo curto e envergonhado, seguido de outro mais lânguido e húmido. E era uma mão que lhe tirava um torrãozinho de açúcar do canto do olho e que lhe descia pelo corpo na demanda de outras partes, de outros encantos, de outros estímulos. E eram, por fim, dois corpos nus num quarto dos fundos, enrolados, beijando-se e tocando-se num aroma de sândalo e flores secas numa cómoda de pinho.
O último período do liceu foi assim passado. As notas num crescendo de quadro de honra, as lições de doçaria numa espiral de sucesso de aprendizagem: o ponto de estrada, o ponto assoprado, o ponto de bola mole; o polegar e o indicador humedecidos com água fria para se ver formar o fio; o sulco que se abre no fundo do tacho, a calda que escorre na escumadeira, deixando-lhe uma fina camada. E o prémio caseiro pelo bom cumprimento materializado numa nudez forte, num sol que entra devagarinho a uma hora matinal e que ilumina um seio numa luz finíssima. Há ainda o sândalo que inebria e que é testemunha de um desempenho juvenil cada vez melhor. Afinal, tudo se resume a uma gestão do tempo, da temperatura e do ponto, porque o amor carnal pode ser doçaria da mais fina.
Passaram-me 20 anos, e o Francisco é dono de uma pastelaria afamada, que reclama ter os melhores jesuítas do concelho. Lá dentro, a comandar a equipa, a Ermelinda ainda é imbatível na calda de açúcar. A vida deu-lhe idade e peso, cabelos brancos e olheiras fundas. O rapaz, agora empresário, tem um sócio, o Juvenal, para quem olha de uma forma que revela ternura e cumplicidade, um entendimento que vai além dos prazos de pagamento e da visão do negócio. Por vezes tomo o pequeno-almoço com ele, encostados ambos a um balcão feito num vidro de transparência impossível. Pede sempre uma bica curta em chávena fria e um rissol de camarão.
- Enjoei o açúcar, sabe?
Então não sei… Conheço-lhe bem a história. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.