Sábado, 16 de Maio de 2009

O improvável jogador

José António Barreiros

 

 

Les jeux sont faits

Talvez fosse o brilho gorduroso da testa reflectido no bojo metálico da feérica máquina que o ladeava, rolando frutos e tlins, ou o sapato esquerdo mordendo-lhe o pé para lembrar que esse era maior do que o outro, desde pequenino. Ou o vago cheiro acre, exaurido o desodorizante, meio perfume barato impregnado em lânguidas carnes, disponíveis. Talvez fosse cada uma das minudências remanescentes daquela hora sombria em que os corpos são vultos e as vozes sussuros. O ronronar sonolento do ar condicionado, enfim audível na silenciosa noite e o tilintar de moedas caindo num chuveiro de estridente alegria. Ou o duvidoso olhar injectado de promessas entumescentes de uma qualquer apátrida de aluguer e já sobravam poucas, os táxis a esvairem-nas para quartos de turno rápido, aviando ilusões.
Talvez fosse isso tudo e as olheiras do croupier. Àquela hora em que já só ficam os que terão de sair sozinhos, restava o que o vício deixa para trás, passadas as enganadoras luzes do entusiasmo.
Foi então que ela entrou. Esfrangalhava-se para um dos lados, como mulher que perde do sapato um salto, e era mulher e em altíssimos saltos, um mundo em fêmea alçado em palafitas. Apostava essa noite a melhor das suas sortes. Regressara ao campo de batalha em que os amores se jogam a dados, as paixões ao azar de uma roleta. Faltava-lhe agora quem a escoltasse, o precário companheiro ou o permanente marido, contrastante em magreza e superlativo em ademanes, arauto e pregoeiro, rebocador na hora de recolher, o hálito turvo, os olhos marejados de sombras.
Sentado no seu canto, empinado na sua girafa, as pernas em arco, ele olhou-a, reconhecendo-lhe anos de distância e a razão da ausência. Estavam gastos. Talvez fosse o cabelo queimado à força de tintas, o seio tombado à força do seu peso. Talvez fosse a vida devorar a beleza cuspindo os caroços da fealdade. Não sabia.  Soube sim que apostou tudo o que tinha essa noite, o corpo e a alma, a memória e a imaginação. No tapete verde do desejo, esgotaram-se-lhe as fichas. Ao sairem, a menina do bengaleiro fez de conta que aquele instante não existia. As luzes apagavam-se, mortiças, preparando-se para a sonolência tardia, na esperança do dia seguinte e para a monotonia do igual.

 

 

publicado por Ana Vidal às 09:30
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53 comentários:
De Rita Ferro a 17 de Maio de 2009
Jab! Mais um texto perturbador, pleno de decepção e escárnio, mas que acima de tudo discorre sobre o destino de dois seres desmesuradamente perdidos, reunidos pelo pecado e a irresponsabilidade! Lembram-me a sua Clarice Lispector que dizia qualquer coisa que exprimia esta ideia: «Não sei que defeito meu sustenta todo o meu ser»! Não, não concordo nada com o Ulisses! Há, sim, grandeza nestas suas duas personagens! Mesmo fazendo batota perseguem um destino excepcional e grandioso! Parabéns!
De José António Barreiros a 17 de Maio de 2009
Boa noite Rita. Atirei-me decisivamente para o interior deste inóspito lugar, rodapé da vida e dos sentimentos, para lhe sentir o pulsar. Num canto recuado, além de toda a cena, perto do bengaleiro, junto ao destino final destas criaturas. Um segundo de glória e de esplendor eis o que lhes resta. Obrigado pelo comentário.
De ulisses a 17 de Maio de 2009
«Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro…»

http://claricelispector.blogspot.com/2008/02/carta.html

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