José António Barreiros
Les jeux sont faits
Talvez fosse o brilho gorduroso da testa reflectido no bojo metálico da feérica máquina que o ladeava, rolando frutos e tlins, ou o sapato esquerdo mordendo-lhe o pé para lembrar que esse era maior do que o outro, desde pequenino. Ou o vago cheiro acre, exaurido o desodorizante, meio perfume barato impregnado em lânguidas carnes, disponíveis. Talvez fosse cada uma das minudências remanescentes daquela hora sombria em que os corpos são vultos e as vozes sussuros. O ronronar sonolento do ar condicionado, enfim audível na silenciosa noite e o tilintar de moedas caindo num chuveiro de estridente alegria. Ou o duvidoso olhar injectado de promessas entumescentes de uma qualquer apátrida de aluguer e já sobravam poucas, os táxis a esvairem-nas para quartos de turno rápido, aviando ilusões.
Talvez fosse isso tudo e as olheiras do croupier. Àquela hora em que já só ficam os que terão de sair sozinhos, restava o que o vício deixa para trás, passadas as enganadoras luzes do entusiasmo.
Foi então que ela entrou. Esfrangalhava-se para um dos lados, como mulher que perde do sapato um salto, e era mulher e em altíssimos saltos, um mundo em fêmea alçado em palafitas. Apostava essa noite a melhor das suas sortes. Regressara ao campo de batalha em que os amores se jogam a dados, as paixões ao azar de uma roleta. Faltava-lhe agora quem a escoltasse, o precário companheiro ou o permanente marido, contrastante em magreza e superlativo em ademanes, arauto e pregoeiro, rebocador na hora de recolher, o hálito turvo, os olhos marejados de sombras.
Sentado no seu canto, empinado na sua girafa, as pernas em arco, ele olhou-a, reconhecendo-lhe anos de distância e a razão da ausência. Estavam gastos. Talvez fosse o cabelo queimado à força de tintas, o seio tombado à força do seu peso. Talvez fosse a vida devorar a beleza cuspindo os caroços da fealdade. Não sabia. Soube sim que apostou tudo o que tinha essa noite, o corpo e a alma, a memória e a imaginação. No tapete verde do desejo, esgotaram-se-lhe as fichas. Ao sairem, a menina do bengaleiro fez de conta que aquele instante não existia. As luzes apagavam-se, mortiças, preparando-se para a sonolência tardia, na esperança do dia seguinte e para a monotonia do igual.
Um dos concertos mais maravilhosos a que assisti foi na capela do cemitério dos Ingleses, em Lisboa: As lamentações do profeta Jeremias, de Cavalieri, pelo grupo Poème Harmonique. Inesquecível.
De José António Barreiros a 16 de Maio de 2009
Passeei pelo Cemitério dos Ingleses, à Estrela, em busca, campa por campa, de nomes conhecidos para um livro que estava a escrever . Fica nas traseiras do Hospital Inglês. Quando pensei nisso pensei nos que entram em estado problemático para onde julgam que sairão para outro destino que não a porta do fundo. Ao lado fica o Lisbon Players . Fui visitá-lo uma vez para ver teatro. Vim com pulgas. Outra só para olhar para o palco por causa de um pequeno outro livro que escrevi sobre o Leslie Howard , sobre a morte do Leslie Howard . Tudo isto cheira a funéreo, caramba ! Não se pode mudar de assunto, para uma tristeza menos necrológica?
Aplaudo a ideia.
Uma tristeza menos necrológica, mas tristeza ainda? Todos nós, portugueses, a conhecemos: chama-se nostalgia.
De José António Barreiros a 16 de Maio de 2009
A estética da nostalgia é a idealização de um passado belo por causa de um presente feio. Mas, com ironia, o conceito de nostalgia entronca etimologicamente sabem onde: no de retrofilia ! Honny soît qui mal y pense... [disse-o Eduardo III ao apanhar, solícito, a liga que a Condessa de Salisbury, sua predilecta, deixara cair durante um baile! E creio que não era de máscaras...]
Com ironia ou com... algia?
Será que tenho de pôr uma bolinha no canto superior direito deste blogue? :-)
De ulisses a 16 de Maio de 2009
Querida anfitriã,
Por falar em ironia, sentei-me agora em frente do computador, para retomar o meu trabalho, mas antes fui «dar uma voltinha», para esticar o «músculo». Encontrei esta delícia:
http://passeiopeloparque.blogspot.com/2009/05/emplumada-processadora-escatologica.html
Gargalhei.
Antes de lê-la tinha pensado em dizer-lhe que entendi que se referia a «grandeza» e não a «grandiosidade», e em acrescentar mais alguma coisa sobre as ligações entre grandeza, sofrimento e humanidade, mas depois de gargalhar fiquei sem vontade. Abençoados os que conseguem fazer-nos rir de nós mesmos!
Um abraço para todos e boa noite.
De José António Barreiros a 16 de Maio de 2009
Obrigado aos que me vão ler a outros lugares, no caso a uma das minhas casas! Irónico texto. Mas no fundo contém um princípio filosófico.
De ulisses a 17 de Maio de 2009
Naturalmente que sim. Se não tivesse seria uma brincadeira, e não uma ironia. Penso eu de que... :-)
E não tem que agradecer. O prazer é meu.
Abençoados, sim. Também já tive direito à minha gargalhada. Depois disso, grandezas e grandiosidades são coisas perfeitamente secundárias. :-)
Boa noite também para si.
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