Terça-feira, 14 de Outubro de 2008

Tragicomédia


 

A moda da stand-up comedy tomou conta deste país, decididamente. De repente, tornámo-nos um povo de cómicos, debitando piadas em qualquer palco, com qualquer público que se preste a ouvir-nos. Já não bastava as mini-estrelas da canção que todos os pais portugueses julgam ter em casa, e que promovem com a convicção inabalável de chegar a ver lançadas no estrelato internacional as suas pequenas Madonnas, agora descobrimos a nossa veia de comediantes. Sobram-nos os motivos e os temas, é certo, mas falta-nos quase sempre aquela dose mínima de sofisticação, de ironia e de subtileza que faz dos ingleses os reis da graça inteligente. Há excepções, evidentemente, mas essas são conhecidas e reconhecidas. A maioria é um desastre.

 

Na impossibilidade genética de imitar os britânicos, acabamos por cultivar um cruzamento entre a piada revisteira e ordinarota (registo em que éramos bons, pelo menos) com uma confrangedora colagem ao humor que aprendemos - mas não apreendemos - com a infindável repetição de séries americanas. Que também as há óptimas, não duvido. Mas que não nos basta passar a beber café por uma caneca, comer hamburgers com ketchup e andar em casa de meias de lã com sola de borracha, para nos transformarmos em genuínos Seinfeld's, disso também não tenho a menor dúvida. Chega a ser deprimente o desfile de mediocridade de hordas de aspirantes a "cómicos" nos concursos televisivos, absolutamente seguros do seu talento, como se a comédia não fosse a mais difícil e ingrata das artes de palco.

 

Mas o fenómeno é irreversível, e já ultrapassou há muito as fronteiras do razoável. Relato-vos um caso que presenciei esta semana, numa missa de sétimo dia. Sim, é verdade: a "piadomania" também já chegou à igreja, e manifesta-se nas alturas mais inconvenientes. Perante uma assembleia consternada por uma morte prematura, duríssima, o padre resolveu fazer-se engraçado. Disse, entre outras inacreditáveis patetices, que rezava o terço a caminho de casa, a guiar: "Uma ave-maria e uma aceleradela, uma santa-maria e um pé no travão", acompanhando esta descrição edificante com um gesto de braços e um estalar de dedos que lembrava o vira do Minho. Ainda estávamos mal refeitos da surpresa e já outra graçola vinha a caminho, no elogio fúnebre: "O ... era um artista. Fez muito do que se pede a um homem para que deixe memória na sua passagem por esta vida. A mim, por exemplo, falta-me tudo: nunca escrevi um livro, nunca plantei uma árvore e nunca tive um filho. Pelo menos até agora... ainda!" E sublinhava o "ainda!" com um sorriso malandreco, como a sugerir que tencionava tratar nessa mesma noite de colmatar essa lacuna. E toda a homilia que se seguiu foi no mesmo tom de stand-up comedy, perante uma plateia contrita pela total ausência de tacto numa ocasião daquelas.

 

Devo acrescentar que nada tenho contra o casamento e a sequente procriação dos padres católicos. Pelo contrário, penso que uma conjugalidade autorizada poderia talvez contribuir para contrariar as estatísticas da desertificação das vocações. Mas esta declaração em tom de piada fácil, completamente deslocada naquele contexto, deu-me vontade de vaiar o padre-humorista ali mesmo, como se faz aos maus actores que mais valia fossem aprender o muito honrado ofício de pedreiro.

 

publicado por Ana Vidal às 01:42
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39 comentários:
De Rita Ferro a 14 de Outubro de 2008
Engraçado falares nisto; no casamento que tive este sábado o padre também se fez engraçado e disse, a certa altura, que Deus precisava de fazer «rewind» já não sei para que efeito. Aquilo caiu-me mal. E aos restantes convidados, estou certa. Não vi ninguém rir-se a não ser o próprio padre, numa tentativa gorada de levar os outros a rirem-se. Em vão. E é como tu dizes. Há um espaço para tudo.
De Ana Vidal a 15 de Outubro de 2008
E quando um humorista é o único a rir-se das suas próprias graças, acho que está tudo dito... :-)

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