«Acabo de proclamar a independência dos meus actos. À cerimônia compareceram apenas alguns desejos insatisfeitos, duas ou três atitudes condenáveis. Um propósito nobilitante, que prometera aparecer, enviou à última hora a sua escusa humilde. A cena transcorreu num silêncio pavoroso.
Creio que o erro esteve na proclamação ruidosa: trombetas e sinos, foguetes e tambores. E, para culminar, uma engenhosa queima de moral pirotécnica, que não chegou a arder de todo.
No final das contas, achei-me sozinho comigo mesmo. Despojado de todos os atributos de caudilho, os confins da noite encontraram-me empenhado na simples tarefa de escritório. Com os últimos restos de heroísmo, atirei-me à penosa incumbência de redigir os artigos de uma extensa Constituição, que amanhã submeterei à assembleia-geral. O trabalho divertiu-me um pouco, apagando do meu espírito a triste impressão do fracasso.
Leves e insidiosos pensamentos de rebeldia voam como mariposas noturnas em volta da lâmpada, enquanto sobre os escombros de minha prosa jurídica passa, de quando em vez, um tênue sopro da Marselhesa.»
Quem escreve assim é Juan José Arreola, um escritor mexicano de quem eu nunca tinha lido nada. Mea culpa. Mas fui salva da ignorância pela erudição, sempre generosamente partilhada, da minha amiga Meg. Este texto subjugou-me à primeira linha, e, na próxima ida à feira do livro (na 3a feira não escapa, espero) vou procurar obras dele. Pela Meg fico a saber que Arreola foi "amigo e interlocutor de Jorge Luis Borges. Da mesma geração que Juan Rulfo, foi um renovador da literatura não só mexicana, mas de toda a literatura da America Latina. "
Deixo-vos ainda duas outras pérolas de Arreola, especialista em micro-narrativas:
"Dois pontos que se atraem não têm por que seguir forçosamente uma linha recta. Sem dúvida, é o caminho mais curto. Há, no entanto, os que preferem o infinito."
"Sou um Adão que sonha no paraíso, mas acordo sempre com as costelas intactas."