Equador
Para mal ou bem dos meus pecados, sou descendente de uma família de roceiros em São Tomé: os donos da “Boa Entrada”. Por sinal, felizmente!, os mais poupados no livro Equador, do Miguel Sousa Tavares. A roça fica na parte baixa da ilha, bem perto da capital. Nunca lá fui, mas diz quem a conheceu que era de uma beleza arrasadora. Como, aliás, toda a ilha.
A tal senhora (não identificada no livro) com quem casou Henrique Mendonça, era filha do fundador dessa e de outras roças, entretanto dispersas por outros donos - para nós, a quase lendária “tia Carolina” - e irmã do meu bisavô.
Fiquei feliz, como humanista que gosto de me considerar, por ter confirmado no Equador o que sempre ouvi lá em casa: que os trabalhadores da Boa Entrada tinham condições de vida e de trabalho bastante acima dos das outras roças, e que a roça era considerada modelar, nesse e noutros sentidos. A sombra negra da escravatura não me deixa, assim, muito envergonhada. Até porque, infelizmente (ou talvez não…) não nos chegou às mãos nem um tostão da fabulosa fortuna dessa época, que afinal acabou por ir parar à outra parte dos descendentes, acho que por uma zanga familiar. Tudo é o que tem de ser. A (apesar de tudo) ainda considerável fortuna do meu bisavô, foi gasta integralmente por ele – e com muita imaginação, segundo sabemos – e aos filhos só chegou, valha-nos isso, uma educação primorosa que lhes permitiu ganhar a vida daí para a frente. Voilá!
Mas herdámos desse bisavô outras coisas, muito mais valiosas: o gosto pela aventura, a curiosidade irresistível pelas coisas distantes e diferentes, a paixão das viagens.
Como memória de um passado que poderia ter-nos deixado milionários, tenho guardado religiosamente, há muitos anos, um documento precioso sobre o que era a ilha de São Tomé nesses tempos áureos: uma monografia consagrada à Sociedade de Geografia de Lisboa, organizada e prefaciada pelo próprio Henrique José Monteiro de Mendonça, na qual se dá conta de todos os acontecimentos ocorridos na roça da Boa Entrada, e em São Tomé em geral, exactamente na época em que decorre a história do
Equador. Ou seja, mais ou menos entre os anos 1900 e 1905. O livrinho é delicioso e tem uma infinidade de informações precisas sobre o funcionamento de uma roça de cacau: fotografias das instalações, das diferentes fases do ciclo do cacau, dos trabalhadores, estatísticas pormenorizadas de safras, doenças, despesas, contratos e repatriamentos, etc. E mais: as opiniões e relatórios dos inúmeros técnicos estrangeiros convidados a visitar a roça, de viajantes ilustres que por lá passaram, de médicos que lá trabalharam no estudo da malária e da desinteria (a principal causa de morte entre os negros).
Há em todo o opúsculo – é nítida – a preocupação de contradizer, com dados estatísticos e testemunhos abalizados, a opinião veiculada pela imprensa estrangeira, sobretudo inglesa, sobre a existência de mão de obra escrava nas roças. E há episódios ali relatados que dariam, por si só, matéria para vários livros. Confesso, aliás, que o guardei com a intenção de escrever um dia uma história baseada nestes factos. Ficcionada, claro. Acabou por fazê-lo o Miguel Sousa Tavares, e bem melhor do que eu, com toda a certeza.
(Publicado pela primeira vez em 9/8/2007)