Sábado, 18 de Julho de 2009

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João de Bragança

 

Era atleta especializada nos 20 km marcha, fascinada pelo gingar do corpo, pela regra obrigatória do pé sempre assente no chão, pelo olhar - que alguns diriam quase esgazeado - com que se vislumbrava a meta. Do pai, militar na Legião Francesa e que se comovia, até ao limite, com o Legio Patria Nostra, herdara o gosto pela disciplina e pelo espírito de sacrifício. No fundo, ingredientes necessários - mas não bastantes - para se servir a pátria e o mundo livre com garbo e honra, ou para se atingirem lugares cimeiros no atletismo mundial.

 

Um dia, ao 18º quilómetro, seguia ela num ritmo seguro e de campeã, assentou mal o pé. Soltou um grito, provocado por um ligamento que se estirava numa rotura sem retorno e por uma alma premonitória que lhe anunciava o fim da carreira. Era uma prova de beneficência nos arredores de Marselha, e a maca em que seguiu para o hospital estava coberta com um lenço enfeitado com desenhos feitos por crianças com fome. Tudo se consumou ao terceiro dia quando lhe disseram que podia guardar o equipamento, se isso não a corroesse de saudades. A medo, entre sedativos e soluços, falaram-lhe, também, de um possível coxear em permanência, resultado da gravidade da situação e da ausência de tratamentos mais modernos. O mundo dela desabava entre um sábado e uma 3ªfeira, a dois mil metros de arrastar consigo a fita de vencedora.

 

Foi então que num jantar de amigos em Montmartre, enquanto se discutiam as tendências da pintura abstracta face ao capitalismo ocidental, veio a conhecer um português, fisioterapeuta, emigrante de segunda geração com provas dadas numa agremiação de bairro. Era um fim de tarde morno e lento, e o arménio que tinha escolhido ser francês afirmava, romântico, que la bohème / ça voulait dire on est heureux. O rapaz tinha um coração de ouro e umas mãos de escolhido. Numa persistência que envergonharia qualquer atleta de alta competição, recuperou-lhe o pé, eliminou-lhe o coxear, ensinou-lhe a virtude do toque em zonas para lá do tornozelo.

 

Cruzei-me com ela hoje no paredão, como já me tinha cruzado ontem, há dois dias, na semana passada, durante o mês de Junho. Encontro-a também na minha paróquia, semanalmente, onde a vejo rezar com um fervor que é o desespero do ateu e o desvelo do clero. Posso garantir que o ritmo na marcha matinal está cada vez melhor, o terço que percorre com as mãos agita-se mais, o mexer dos lábios vai num frenesim crescente. Apostaria que as suas orações acabam ao quilómetro treze, quando na 2ª feira acabariam aos oito - sinal de que a velocidade se aproxima do que é possível, considerando a entorse de há 35 anos.

 

Quando chega a casa encontra o fisioterapeuta a esfregar as mãos - não só de contentamento, mas também para as aquecer, porque ela se queixa que um afago frio na zona baixa das costas lhe arruína o erotismo e lhe atrasa o final. Ainda ouvem Aznavour, porque cada casal tem o seu fetiche. No dia seguinte voltará ao seu passeio higiénico, optando, talvez, pelos mistérios gloriosos.

 

É a filha do tenente francês, e aposto que a vida dela é esta. Se eu me cruzo com ela todos os dias, não havia de saber?

 

 

 

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publicado por Ana Vidal às 07:30
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17 comentários:
De rocha a 18 de Julho de 2009
pois é....tambem fiquei em êxtase com este texto magnifico do nosso amigo.... O escritor a sair da casca ou a ilha do pessegueiro a dar frutos???
Beijo apessegado
Rocha
De JdB a 18 de Julho de 2009
Sei lá eu... Talvez um porta cheia de vento que se abriu...
Um beijo para si, industrial de sucesso do ramo do evento

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