João de Bragança
Nas minhas rotinas diárias cruzo-me, tantas e tantas vezes, com as mesmas pessoas: no paredão, no supermercado, na pastelaria, nos correios, no prédio onde moro. Dou por mim a olhar aqueles rostos e a imaginar-lhes a vida - o que pensam, como amam, como se chamam os filhos, o que fazem quando chegam a casa, qual a sequência com que se lavam e vestem, que fetiches têm, o que os torna infelizes, de que riem perdidamente ou de que choram numa convulsão de fazer pena. Construo-lhes uma história e escrevo-a no Moleskine, que também é para isso que ele serve.
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Como resquícios de outros tempos da fidalguia, tinha uma ementa de um jantar no iate Amélia desenhada e dedicada pelo Rei D. Carlos. Estava numa bonita mesa inglesa, emoldurada ao lado de fotografias do seu pai, da sua mãe, dos seus irmãos, lado a lado com a realeza exilada no Estoril e Cascais. Habituara-se, em nova, a jogos de ténis e lanches em clubes elitistas. As noites, dançadas ao som de orquestras com brilho e glória, eram protegidas por um manto de estrelas que só o poder do dinheiro e do nome podiam garantir. Casara mas não tivera filhos, e separara-se anos mais tarde, numa altura em que o divórcio, não sendo curriculum, já não era cadastro.
Encontrou aquele que viria a ser o seu segundo marido numa missa de 7º dia onde, para além do falecido, se perfilava uma fatia grande do PIB nacional, e 80% dos sócios dos clubes lisboetas mais selectos. Antigo empresário, homem do seu nível social, com ele já tinha partilhado boleros e valsas inglesas, taças de champanhe e partidas de ténis, na variante pares mistos, onde ele evidenciara um jogo quase imbatível ao fundo do court. Agora, alquebrado e com problemas nas costas, mantém a sanidade física possível num gingar de desacerto esquelético.
Criaram ambos a rotina do paredão matinal: ela de carteira a tiracolo, como se transportasse as jóias que lhe restam numa louis vuitton bem imitada, porque a ladroagem na vila está por demais. Ele no seu desacerto constante, ombro para cá e para lá, braço descompassado da perna oposta, uma coluna desesperada a aguentar partes que parecem querer debandar.
O filme está, infelizmente, embotado - se não de miséria, pelo menos de desilusão. Ele joga todas as noites, tentando simular ao poker o bluff que não conseguiu nas negociações com os sindicatos. Perde mais do que ganha, porque a trinca não entra, a sequência máxima é muito difícil, o full hand está no domínio das hipóteses irreais. Vai buscá-la todos os dias de carro a Atibá, onde o elemento final de uma família que privou com condes e marqueses é dama de companhia de uma idosa, com momentos cada vez mais improváveis de lucidez.
As noites agitadas arruínam os desejos de descanso nocturno e, por volta das quatro da manhã, com uma pontualidade que enerva, há um encontro, combativo e inesperado, na mente da anciã acamada: o fulgor e a confusão, a memória e o olvido. Nunca se saberá quem vence a contenda materializada num monólogo a quatro frases:
- Conheci muito bem a sua avozinha, devia eu ter uns doze ou treze anos. Cabia-me lavar as casas de banho todas - e olhe que eram muitas. Acho que a minha fralda está suja. Importa-se de a mudar?
Cruzo-me com eles todos os dias, conheço-lhes a história como ninguém. Ele traz no olhar o encavanço das cinco da manhã que o atirou, falido, para um sofá e uma água fresca sem gás. Ela traz a carteira a tiracolo, bem junta ao peito, porque a malandrice está como nunca se viu.