Segunda-feira, 1 de Junho de 2009

Azinhagas da memória

Manuel Fragoso de Almeida

 

O calor era abrasador!

 

As poucas árvores que bordejavam o caminho, discutindo as nesgas dos muros de pedra com as silvas secas, pareciam não ter forças sequer para dar aos caminhantes uma simples sombra, quanto mais conseguir dar-nos um arzinho fresco.

 

Descemos para descansar um pouco o pobre burro que tínhamos pedido emprestado ao meu avô… andámos um pouco a pé, mas o receio de cada passo era arrepiante. Parecia que o restolho seco, de tão agreste, haveria de pegar fogo às tapadas em volta…

Mas o que é que estávamos ali a fazer?

 

Bom, isso era meio complicado de explicar… tinha havido, obviamente, uma zanga! Os mais velhos tinham conseguido pedir emprestados dois cavalos e, sem nos dizer nada, prepararam um passeio pelo campo com piquenique e tudo.

 

Nós, para não nos ficarmos, respondemos na mesma moeda. A charrette, fomos buscar ao primo António Carmona, o burro que pedimos ao avô Jaime era velhote mas ainda tinha vigor suficiente para nos transportar aos três, e os arreios estavam garantidos pelo armário que o meu irmão e o Joaquim António tinham arranjado a rigor na cavalariça do nosso bisavô, sempre pronto para nos apoiar, e sobretudo para autorizar o que a minha avó Gabriela não nos deixava fazer.

 

Escolhemos, para o nosso passeio de retaliação, ir visitar o Zé Baptista à Asseiceira, que nos esperava à porta da queijeira, apoiado no cajado, e limpando o suor da careca com o lenço, que usava previdentemente entre a cabeça e o chapéu, meio roto pelos inúmeros estios e invernias acumuladas…

Tudo tinha corrido bem até ali.

 

Mas na volta, a caminho de Nisa, com o cansaço do burro, a areia do caminho, as covas endurecidas pela falta de água, e sobretudo a sonolência que a gordura exagerada do meu primo imprimia à moleza das rédeas, deu-se o inevitável… o burro tropeçou, caiu no meio da azinhaga, ficando todo ferido nos joelhos, os varais da charrette partiram-se, e nós fomos projectados um para cima do burro, que ainda esperneava, e os outros dois aterrámos, todos esfolados, por entre as pedras e a areia daquele maldito caminho.

 

Por sorte, passou por nós de bicicleta o João da Burra, que lá nos ajudou nos arranjos possíveis. O pastor daquela tapada ficou mais exposto a algum vento nocturno, com a redução dos arames que lhe tirámos da cabana improvisada com serapilheira e palha, ainda antes bem seguros… mas era preciso voltar a prender os varais da charrette,  para seguirmos viagem…

 

Com umas folhas de figueira limpámos como pudemos os joelhos do burro, e a coisa lá se compôs. Precisávamos somente de começar a planear uma historiazinha para que o meu avô, o meu primo, etc., não nos aplicassem um correctivo demasiadamente duro.

Cada um dava a sua ideia, enquanto caminhávamos ao lado da charrette e do sinistrado burro. Primeiro, iríamos directo ao ferrador que devia arranjar os varais, depois o burro ficava na cavalariça do meu bisavô, porque tínhamos chegado tarde e não convinha. A coisa já estava praticamente alinhavada e melhor planeada, quando chegámos à estrada alcatroada. Já só faltavam 5 Km, e agora o caminho era bem melhor…

 

O pior foi o arrepio que todos sentimos, mesmo debaixo do calor tórrido, quando passou por nós uma mulherzinha com um cântaro à cabeça e que voltava da vila. “Então os meninos estão bem? Lá em Nisa, já se sabe que os meninos tiveram um desastre de carroça e o que o burro ficou todo desgraçado! Olhe que o seu primo António já vos está a preparar o sermão, e ele não costuma ser nada de brincadeiras!”

 

Até hoje ainda não encontrei um canal de informação tão perfeito, rápido e fluente… que coisa! Ainda nós íamos e já a notícia vinha ao nosso encontro…

 

publicado por Ana Vidal às 07:30
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16 comentários:
De Ana Vidal a 2 de Junho de 2009
Não resisto a comentar o queijo de Nisa, que é extraordinário porque é muito bom em todas as fases: desde fresco até à cura máxima, em que fica seco e picante (e não se pode ter em casa porque o cheiro é insuportável). Não conheço outro assim, uma maravilha!
:-)
De Manecas a 2 de Junho de 2009
Da próxima vez que lá for trago um queijinho...Talvez dois para aromatizar os jantares da Luisa...

Beijinhos

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