Rita Ferro
Querido mudei a casa
Já pensou por que razão as suspeitas de adultério,
horrorosas nos dois sexos,
se manifestam nos homens de uma forma
tão violenta e irrevogável?
Abreviando bibliotecas sobre o assunto,
sabemos que esta desigualdade não só se deve aos costumes
– concedendo aos homens, durante séculos, a liberdade de poderem cometê-lo sem grandes punições –
nem tampouco à sua maior agressividade, mas também à
incerteza de paternidade,
condição que desde sempre os vulnerabiliza.
O post da última quarta-feira, sobre atitudes contra-corrente, inspirou-me estoutro: o perdão masculino relativamente à prevaricação feminina, na esfera íntima de um casal que se ama, e o silêncio envergonhado que o envolve, como se cada homem se acreditasse herói na sua capacidade de contrariar o estereotipo e de se arriscar à boçalidade da chacota dos seus pares, chegando a sentir-se a mais desgraçada das criaturas vivas por aceitar o retorno da mulher maculada por outro homem, quando muitas vezes nem se questiona quando sujeita a sua ao mesmo, repetidas vezes,
ou até a que, por sua causa,
esta possa contrair moléstias fatais ou desonrosas.
E por que razão os próprios homens perdoam,
apesar do flanco de fraqueza?
Arriscamos: quem ama precisa do outro
e preferirá sempre fazer das tripas coração
a ver-se privado desse oxigénio vital.
Talvez por isso trouxe hoje uma carta, eivada de contradições,
de outro interlocutor conhecido: Napoleão, a quem as infidelidades da mulher causavam uma dor lacerante.
Talvez para nos lembrarmos que o poder absoluto é uma anedota
até para imperadores ou que não existe batalha mais difícil
do que a travada em nossas casas.
Para Josephine, 1796
Não passei um dia em que não te amasse. Não passei uma noite sem te abraçar. Nem sequer bebi uma chávena de chá sem amaldiçoar o orgulho e a ambição que me forçam a estar longe do espírito que anima a minha vida.
No meio dos meus deveres, quer esteja à frente dos exércitos ou em visitas de inspecção, só a minha amada Josephine se ergue no meu coração, ocupa a minha mente, preenche os meus pensamentos. Se me afasto de ti com a velocidade da torrente do Rhône, é para mais depressa te voltar a ver. Se me levanto a meio da noite para trabalhar, é para apressar em poucos dias a chegada do doce amor. Contudo, nas cartas de 23 e 26 tratas por «vous». «Vous» para ti! Ah, desgraçada, como é que pudeste escrever tal carta? Como é possível! E depois há aqueles quatro dias entre 23 e 26; o que andavas a fazer para não poderes escrever ao teu marido?
Ah, meu amor, esse «vous», esses quatro dias acrescentaram algo mais à minha indiferença. Maldito seja o responsável! Possa ele, como pena e castigo, sofrer o que a minha convicção e testemunho (o que só abona em favor dos vossos amigos) me fez padecer! O inferno não tem tormentos tão grandes! Nem as Fúrias serpentes que cheguem!
«Vous»! «Vous»! Ah! Como é que as coisas vão estar daqui a duas semanas?... O meu espírito está sombrio, o meu coração agrilhoado e aterrorizado com as minhas fantasias… Já não me amas, mas vais ultrapassar a perda. Um dia deixarás de me amar de todo, pelo menos diz-me; então saberei porque mereci tal infelicidade…
Até breve, minha esposa, meu tormento, alegria, esperança e ânimo da minha vida, a quem eu amo, a quem eu temo, que me enche de ternos sentimentos, com que a Natureza me atrai, com os violentos impulsos, tão tumultuosos como o trovão.
Não te peço nem amor eterno, nem fidelidade, apenas… Verdade, honestidade sem limites. O dia em que disseres que não me amas, marcará o fim do meu amor, e o último dia da minha vida. Se o meu coração fosse tão vil que amasse sem ser amado, despedaçava-o.
Josephine! Josephine!
Lembra-te do que te disse: a Natureza presenteou-me com um carácter resoluto e viril. E fez o teu de renda e gaze. Deixaste de me amar? Desculpa-me, amor da minha vida, a minha alma está exaurida por forças antagónicas. O meu coração, obcecado por ti, está cheio de medos que me prostram na tristeza… Sinto-me capaz de dizer o teu nome. Vou esperar que escrevas.
Até breve! Ah! Se me amas menos é porque nunca me amaste. Nesse caso, serei mesmo digno de pena.
Bonaparte.
P.S. – Neste ano a guerra mudou muito. Distribuí a carne, o pão e forragem; a minha cavalaria em breve estará
Nota: Napoleão casou em 1796 com Josephine de Beauharnais, uma aristocrata pobre de origem crioula, da colónia francesa da Martinica, com dois filhos de um casamento anterior; catorze anos depois, divorciou-se desta para se casar com a arquiduquesa Marie-Louise da Áustria, para ter um herdeiro que lhe assegurasse a sucessão. Cinco anos depois do segundo casamento seria exilado