Rita Ferro
É uma fotografia histórica.
Foi tirada em 1996,
no enterro de François Mitterrand,
tendo merecido à viúva do Presidente
(na foto de cachecol branco, ao lado do filho do casal, Jean-Christophe)
duríssimas críticas por parte do povo francês,
ao ter permitido a seu lado a presença da amante do marido,
Anne Pingeot (na foto com um pequeno chapéu preto),
e da filha ilegítima, Mazzarine
(de cachecol preto na foto).
Como resposta, Danielle Mitterrand
escreveu uma carta dirigida aos franceses
que aqui se reproduz
em português do Brasil
e que, na altura, dividiu a França.
"Antes de mais nada devo deixar claro que não é um pedido de desculpas. Muito menos um enunciado de justificativas vãs, comum aos covardes ou àqueles que vivem preocupados, em excesso, com a opinião dos outros.
Aos 71 anos, vivendo a hora do balanço de uma existência que é um sulco bem traçado e profundo, já não mais preciso e nem devo correr atrás de possíveis enganos. Vivo o momento em que as sombras já esclarecem, e que as ausências são lindas expressões de perenidade e criação. Sombras e ausências podem ser tudo, ao passo que luzes e presenças confundem os mais precipitados e os mais jovens.
Vivi com François 51 anos; estive com ele em muito desse tempo e me coloquei sempre. Há mulheres que não se colocam, embora estejam; que não se situam, embora componham o cenário da situação presumível.
Uma vida de altos e baixos. Na época da Resistência, nunca sabíamos onde passaríamos a noite -- se na cama, na prisão, nos bosques, ou estendidos por toda a eternidade. Quando se vive assim em comum cria-se uma solda, e a consciência de que é preciso viver depressa.
Concentrar talvez seja a palavra. Por isso tentei entendê-lo, relacionar-me com sua complexidade, com as variações de sua pessoa e não de seu caráter. Quem entende, ou pelo menos luta para compreender as variações do outro, ama realmente. E nunca poderá dizer que foi enganada, ou que jamais enganou. Não nos enganamos, nos confundimos quando nos perdemos da identidade vital do parceiro, familiar ou irmão. Ou jamais os conhecemos, o que também não é um engano. Quem não conhece não tem enganos!
Nas variações do outro, não cabe o apaziguador que destrói tudo antes do tempo, em forma de tranquilidade. Uma relação a dois não deve ser apaziguada, mas vibrante, apaixonada, e não enfastiada. Nessa complexidade, vi que meu marido era tão meu amante quanto da política.
Vi também que, como um homem sensível, poderia se enamorar, se encantar com outras pessoas, sem deixar de me amar.
Achar que somos feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso admitir docemente que o ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém, e depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente. Não somos o centro amorável do mundo do outro. É preciso aceitar também outros amores, que passam a fazer parte desse amor como mais uma gota d'água que se incorpora ao nosso lago.
Simone de Beauvoir dizia bem que temos amores necessários e amores contingentes ao longo da vida.
Aceitei a filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos angustiados que me dizem
'Obrigado por ter aberto um caminho.
Meu pai vai morrer,
mas eu não poderia ir ao enterro
porque a mulher dele não aceitava'.
É preciso viver sem mesquinhez, sem um sentido pequeno, lamacento, comum aos moralistas, aos caluniadores e aos paranóicos azedos que teimam em sujar tudo. Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para compreender e amar seus parceiros em suas dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões.
Isso é amar por inteiro e ter confiança em si mesmo.
Danielle "
E a pergunta fica, como convite à reflexão:
Qual de nós, apesar da mágoa ou da humilhação,
seria capaz de protagonizar uma tal excelência?