Luísa
Estamos sem palavras. A Porta do Vento acaba de ser notificada de que, tendo cometido a infracção de não respeitar hierarquias, foi condenada a receber para jantar, hoje mesmo, um certo auto-convidado. A nossa consternação é imensa, agravada pela dupla dificuldade com que nos confrontamos. A primeira é saber quem é, realmente, este «penetra». Temos indicação do nome, é certo, e do costureiro, o Ermenegildo. Mas tudo o resto são interrogações. Não sabemos se é ou não é engenheiro. Não sabemos se tem ou não tem experiência efectiva na área do projecto imobiliário de gama muito baixa. Não sabemos se fala ou não fala mais do que um Português elementar, nem se domina ou não domina a língua de Shakespeare na sua versão técnica. Não sabemos se fuma ou não fuma. Não sabemos se é ou não é um desportista, nem se pratica ou não pratica «jogging» com regularidade superior à das suas deslocações oficiais ao estrangeiro. Não sabemos se é ou não é honesto, nem se é ou não é um homem de família, embora pareça – mas talvez não… – capaz de vender o tio, o primo e a própria mãe. Não sabemos se perfilha ou não perfilha o espírito do «Robim dos Bosques» – mesmo não duvidando de que perfilha o do «Chico esperto». Não sabemos se fez ou não fez mil e uma reformas; se cumpriu ou não cumpriu mil e uma promessas; se governa, se não governa, ou se simplesmente desgoverna… Não sabemos, em suma, nada de nada! Para sermos francas, não sabemos sequer se é uma pessoa de corpo e alma, ou se apenas a personagem de uma ficção de marketing político, promovida por umas forças indefiníveis – evitemos os estafados adjectivos de «negras» e «ocultas» – ao serviço de interesses inomináveis. Tantas incertezas matam-nos, naturalmente, porque ninguém, no seu perfeito juízo, mete em sua casa quem não conhece. E depois, como vamos escolher um menu adequado e uma roda de convivas que não se deixe tolher pelo receio de abordar temas inconvenientes ou melindrosos? A animação deste jantar vai ser uma dor de cabeça. Se não aparecer ninguém, a nossa anfitriã já disse que lhe dá música, a excelente «Ópera do Malandro»…
A segunda dificuldade é a falta de tempo para grandes rasgos de criatividade culinária. Mas porque a lata do auto-convite pede um jantar com lata, pensamos explorar alguma da que temos em despensa e abreviar trabalho. Assim, para a entrada, atacamos umas latinhas de cogumelos, que gratinamos com queijo sobre lasca de presunto de «Chávez». Para o prato principal, investimos numas latas de atum, e confeccionamo-lo em «quiche», com o frugal acompanhamento de um tachinho de nabos confitados. E para sobremesa, avançam as sempre providenciais latas de «melocotones», o debate sendo se os perfumamos com uns polvilhos de arsénico, se os guarnecemos com umas hastes de cicuta. O vinho – lembrando a crise… – servimo-lo a copo, aproveitando o apaladado Casal da Eira, colheita especial Tetra Pak, que nos sobra dos assados. E depois do café – e, concedemos, de um «Português Suave» saboreado atrás da cortina – ala que se faz tarde!
Claro que não deixaremos de avisar que o jantar começa rigorosamente às nove e que os atrasos, nesta Porta, se assinalam com vaias monumentais.