João Paulo Cardoso
De volta aos neons
Já terminou o prazo para os que ainda entregam o IRS em papel, um dos momentos menos edificantes da história colectiva de escrita manual, muito distante do que representou, por exemplo, salvar o manuscrito dos "Lusíadas" da sanguinária voracidade intelectual dos tubarões, há cinco séculos.
Pergunto-me como é que hoje somos um número, ou uma soma deles, quando antes éramos delirantes traços multicolores nas paredes da sala dos nossos pais.
Fomos neons exuberantes, somos meros post-its.
No meu caso, tudo começou no ventre materno.
Sabem alguns que a minha mãe foi operada em Fevereiro.
Médicos-arqueólogos descobriram nessa ocasião alguns gatafunhos escritos entre 1970 e 1971 e há até quem jure ter lido a expressão "Abaixo Salazar".
Sim, porque nesta altura, ao invés de dentadura, eu tinha ditadura e havia que tomar posição desde cedo.
Vieram depois os grafitis nas paredes do quarto e da sala.
Os tais neons de infância, rapidamente censurados pela esponja azul do papá e da mamã, gente sem sensibilidade artística que ao invés de bater palmas ao meu belo traço verde, batiam com o chinelo no meu rabo até este ficar vermelho.
Foi sobretudo nas escolas que aprendi a escrever coisas como "a, e, i, o, u" ou o clássico "pa-ta, pe-ta, pi-ta, po-ta" e o resto que soube depois.
Foi também nas escolas que comecei escrever bilhetinhos às meninas mais engraçadas e não, não estou a falar das que contavam anedotas ou escorregavam em cascas de banana.
Podiam ser pedaços de emoções pouco eficazes ao nível da mensagem, mas um primor em matéria de correcção ortográfica, bem diferente de um "Vamox kurtir bué" em sms, que depressa pôs fim ao charme de uma declaração de amor em imperceptível caligrafia de autor.
Eu não gostava de ser um sms.
Se me fosse dado a escolher, também não seria um nome no recenseamento eleitoral, uma assinatura numa declaração de amizade pós-acidente de viação, um número no modelo de IRS, nem sequer uma mensagem romântica em tarja arrastada no céus por avião pago com assinatura em cheque generoso.
Não seria tão pouco letrinha valiosa no tal manuscrito dos "Lusíadas", rascunho de Shakespeare ou notas amestradas numa pauta de Mozart.
Não.
Procurando contribuir para voltar a edificar a história colectiva de escrita manual, eu gostava era de ser um autógrafo do Tony Carreira na maminha de uma fã.
Ou, melhor, uma cábula nas pernas de uma universitária de saia curta, com preferência para uma frequência de Química, daquelas que exigem a transcrição de fórmulas desde o tornozelo até à rendinha da lingerie Triumph.
Tal qual um neon.