Portas Entre Abertas
Passou a velha cancela cansada de décadas de abandono, onde eram visíveis restos de tinta dos anos em que a vida habitara aquele lugar.
Jarros e malmequeres conviviam no pequeno quintal com maciços de silvas que lhe traziam à memória amoras e amores de infância.
Esquecera-se de como o seu pequeno país era feito de pequenos detalhes. Esquecera-se do calor da cal nas paredes, dos canteiros negligentes, das latas de craveiros encarnados, dos degraus das portas de onde, sentados, se via o mundo.
A verde e plana imensidão do norte europeu, as arrebatadoras fachadas das catedrais, os civilizados louros, arrumos e aprumos cegaram-lhe as reminiscências do que também nunca fora o seu perfeito pretérito.
Olhou para a decadente fachada que já deixara velha há muitos anos. Procurou, em vão, ao redor da casa, as sóbrias latadas que sombreavam a alma e o corpo durante os prolongados estios. Procurou cheiros de verão, frescos das escuras adegas, piar das aves de capoeira, zoadas sonolentas de abelhas e a humidade dos musgos nos espessos muros que ladeavam os caminhos.
Olhou para a decadente fachada e para a porta entreaberta que temia cruzar. Hesitante, empurrou-a, com receio de um escuro capaz de longínquas visões.
O miado e fuga de um gato enregelaram-no, precipitando-o de novo para o exterior.
Na soleira, enquanto acendia um cigarro, atentava nos altos viadutos de uma qualquer auto-estrada que cercavam a terra que o vira nascer e partir, na desconcertante arquitectura de feios condomínios entremeados com velhos campos e stands de automóveis. Deteve-se nas provas irrefutáveis da apregoada modernidade de um povo que tinha dificuldade em reconhecer e que duvidada se reconhecesse a si mesmo.
A nicotina de que tentava fugir inebriou-o, empurrando-o de novo para o interior.
Achou-se no meio da sala, de onde se despedira há quase quarenta anos. Pareceu-lhe infinitamente menor do que na longínqua madrugada em que a deixara, desculpando-se com uma qualquer querela política em tempos de outros regimes. Achou-se ele também vergonhosamente menor ao perceber que as dimensões fantasiadas durante séculos eram humanas e não físicas. Achou-se perdidamente perdido num espaço que lhe diminuía a alma e engrandecia os medos. Não se achava, enfim.
A porta da rua entreaberta permitira a devassa e o saque. Resistira-lhe o velho retrato amarelado de uns não conhecidos antepassados, levados precocemente pela gripe espanhola. Nem bom vento, nem bom casamento.
O longo corredor aliciava-o a percorrer cómodos outrora mais íntimos e incómodos.
Não se achou capaz de achar o passado.
Bátegas de água caiam de um céu cinzento ainda assim mais azul do que o outro europeu. Entre abertas, abandonou a casa.
Partiu, detendo-se, por momentos, na branca magnólia que as rajadas despiram naquela breve hora. O mesmo vento que violento bateu encerrando-lhe a porta e uma vida.
Texto enviado por: Luís Castilho