Sábado, 7 de Fevereiro de 2009

Ideias à Solta

Manuel Fragoso de Almeida

 

 

Manter a Utopia

 

A vitória na corrida à Casa Branca de Barack Obama tem sido enfatizada nos mais variados pontos do universo, mas também, não raro, tem sido endeusada a um nível tal que se torna totalmente impossível que o novo presidente venha a corresponder minimamente a essas exageradas expectativas.

 

Passado algum tempo da referida eleição, e das imagens retidas no dia da sua formal chegada à Casa Branca, embevecidos ainda pela sua capacidade oratória e postura serena mas convicta, talvez fosse bom tentarmos reflectir sobre a ideia duma real mudança e a inauguração de um novo ciclo na vida política, tanto americana como mundial. Evidenciar os traços de esperança que sem dúvida existem, mas não deixando de sublinhar o quão difícil e árduo será o caminho.

 

Sistema de Saúde Público? - A SIC Notícias, no passado fim-de-semana (31/Jan e 1/Fev), chamou à realidade os mais distraídos através dum magnífico documentário (apesar de tudo e como acontece muitas vezes, o documentário também é americano… bendita liberdade de imprensa!) que punha em paralelo as promessas eleitorais de Obama no que se refere ao Sistema de Saúde Pública, inexistente nos Estados Unidos da América, e a acção já em marcha de todos os lobbies ligados, nomeadamente, à indústria farmacêutica, às companhias de seguros e aos multimilionários, detentores de enormes fortunas, exactamente pela detenção do capital nessas empresas.

 

O contraste entre as longas filas de pessoas que esperavam ao frio e à chuva por uma simples consulta médica, porque não têm possibilidades de pagar um seguro de saúde que lhes faculte os cuidados mínimos para si e para os seus filhos (o caso duma rapariga de 27 anos com um cancro e vários filhos, era verdadeiramente lancinante), e a defesa do actual sistema por entrevistados sentados nas suas mansões no Texas, sublinhando a individualidade e originalidade do modo de vida americano, é gritante.

 

Se acrescentarmos a este panorama o facto objectivo de que alguns fármacos chegam a ser postos à venda nos USA a mais de cinco vezes o preço da Europa, percebemos a dimensão do que está em causa, e as razões da sustentação dos lucros colossais que a indústria farmacêutica americana é capaz de gerar, ano após ano.

 

Junto ainda um dado final, perturbador mas real: a esmagadora maioria dos senadores americanos, incluindo Obama, recebe ou recebeu quantias substanciais para o financiamento das suas campanhas, provindas exactamente dos cofres da indústria farmacêutica, que agora se reunirá na cobrança ávida das suas pretensões, e na defesa intransigente dos seus interesses.

 

Factores de Mudança – A eleição de Obama encerra factores que porventura a explicam e que nos aportam, paralelamente, esperança nos alicerces de um novo ciclo para a humanidade. Sublinho alguns pontos que me atraem na pessoa ou no caminho percorrido, e que me parecem determinantes:

 

Convicções e Genuinidade – Para lá dos dotes oratórios (não só a palavra, mas o gesto, a entoação e sobretudo a serenidade com que se expressa), o que me parece novidade são as profundas convicções que Obama transporta e transmite, e o modo genuíno como o faz. Habituámo-nos infelizmente a políticos ou oradores que nos dizem aquilo que previamente estudaram ou lhes disseram que queremos ouvir (os famosos consultores de imagem…), e o modo como devem actuar para nos convencerem. O móbil do discurso provém do exterior.  O processo de construção da mensagem de Obama, é o inverso. Provém do interior das suas convicções e do modo hábil mas genuíno como as invoca e as transmite.

 

Mobilização da Juventude – Este modo de estar, aliado aos chamados valores genuinamente americanos – liberdade, iniciativa individual, igualdade de oportunidades, igualdade de direitos independentemente de raças, credos, religiões – balizados pela assumpção de valores estruturantes da sociedade (primado da justiça, da liberdade de imprensa, da responsabilidade social, da solidariedade para com os mais desfavorecidos e mais pobres), mobilizou a juventude dando significado aos seus ideais, e sobretudo conteúdo à suas utopias. O número de voluntários que se organizou em redor da campanha e da eleição de Obama é o resultado desta nova mensagem.

 

Recursos Financeiros angariados, Organização e utilização massiva da comunicação electrónica – Nunca nenhuma campanha teve a capacidade de reunir os meios financeiros postos à disposição de Obama, mas também talvez nenhuma tivesse a capacidade de organização demonstrada por esta candidatura, e tivesse percebido que no século XXI o meio de comunicação mais eficaz e mais granular na sua capacidade de dispersão da mensagem, é a comunicação electrónica – Internet, e-mail, etc.   

 

Regressamos, com efeito, em termos políticos, à presença dum conceito perdido: a militância. Obama conseguiu que os seus apoiantes, não só o apoiassem, mas sobretudo que o fizessem duma forma voluntária e interiormente militante.

 

O contraponto na vida americana nos tempos que se avizinham, será exactamente ao nível da militância. A militância dos interesses, expressa através dos lobbies que se excederão em campanhas, em contactos, em pressões junto do poder político, senadores e congressistas, para fazerem valer os seus argumentos. Mas também a militância dos valores, das causas, da defesa dos mais desprotegidos, dos mais pobres, da redistribuição dos rendimentos.

 

Obama terá, porventura, sido eleito em razão do renascimento duma militância de causas que se julgava desaparecida.

 

Deixo-vos com uma ilustração musical. A força do Bruce Springsteen, e a multiculturalidade de Pete Seeger, mesmo aos 80 anos…

 

 

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publicado por Ana Vidal às 11:48
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8 comentários:
De Ana Paula Motta a 7 de Fevereiro de 2009
A questão da saúde pública é mesmo um grande "nó" quase impossível de ser desatado pelo governo americano. Nós que vivemos em países onde a saúde pública é garantia universal (mesmo com todos os problemas que temos) não imaginamos como é a vida de quem não tem um seguro de saúde nos EUA. Até nosso calendário básico de vacinação é uma dos mais completos do mundo ( e olha que somos considerados país em desenvolvimento). Nem tudo são flores do reino do Tio Sam .
De Manecas a 8 de Fevereiro de 2009
Este é realmente um "senhor nó", e parece-nos quase impossível de conceber os milhões de americanos que se vêem constantemente perante um dilema essencial, não ter dinheiro para pagar o seguro de saúde, e por esse facto não lhe serem prestados cuidados básicos de saúde...

Vamos ver o que este embate nos reserva...

Obrigado Ana Paula
De Ana Vidal a 8 de Fevereiro de 2009
Sem utopias não teríamos coragem de resistir aos tempos difíceis e iríamos ao fundo. A descrença paralisa, deixa-nos incapazes de reagir. É por isso que gosto de utopias: impelem para a acção!

Boa reflexão, Manecas.
De Manecas a 8 de Fevereiro de 2009
É isso aí (como dizem os nossos irmãos brasileiros...).

O sonho comanda o mundo!

Em termos políticos mais crus, representa ter uma linha estratégica ambiciosa para um grande problema actual.

Beijinhos
De Luísa a 8 de Fevereiro de 2009
Para mim, Manuel, o Obama é apenas o 44.º presidente dos EUA. Não é ele que vai mudar o país. O país é que foi mudando antes dele e dá-nos, com ele, esse sinal: o sinal extremamente positivo de que, sendo um país jovem, tem amadurecido muito mais depressa do que o Velho Continente; de que, apesar das suas contradições, pratica uma tolerância que ainda não vimos em nenhum outro país ocidental; de que é capaz de se renovar – e será certamente o primeiro a resolver a crise; e de que tem por si uma grande riqueza humana e um apurado sentido democrático, que nos merecem um respeito que, injusta ou despeitadamente, temos andado a regatear.
De Manecas a 8 de Fevereiro de 2009
A Luísa não deixa de ter razão...

Mas nos países, como nas organizações, uma pessoa pode fazer a diferença, e nesse sentido a esperança é que o Obama não venha a ser somente mais um presidente dos EUA.

Obrigado pela sua achega!
De Ana Vidal a 8 de Fevereiro de 2009
É isso que eu tenho dito, Luísa: a mudança está nas pessoas (americanos, neste caso) que elegeram Obama. Por isso, mesmo que ele venha a não corresponder às expectativas altíssimas que tem sobre os ombros, o passo em frente já foi dado.
Mas concordo que é quase sempre precisa uma personalidade destas (um líder muito especial) para galvanizar as pessoas e levá-las a dar o melhor de si. Nesse sentido Obama é essencial, e desejo-lhe toda a sorte possível num mandato extremamente difícil.
De Luísa a 8 de Fevereiro de 2009
Ana e Manecas, reformulo: para mim, PARA JÁ, o Obama é apenas o 44.º presidente dos EUA. ;-D

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