"Saltou da cama e entrou no quarto de banho, para se arranjar. O esposo já estava pronto, na cozinha, à espera dela. Tomou um duche rápido, penteou-se, passou um batom vermelho nos lábios. Depois vestiu uma calça justa, sapatos e mala a condizer e desceu finalmente. Usava a pulseira que ele lhe tinha oferecido como prenda de aniversário, linda e nada pirosa. Os meninos vieram despedir-se da mamã e do papá, que sairam então para trabalhar, no automóvel novo que estava estacionado à porta da vivenda. Ainda disseram tchau à moça que vivia em frente."
Todos os grupos sociais têm os seus códigos de reconhecimento, de demarcação de território, exactamente como o jacto de urina deixado pelo leão nas árvores que circundam aquele que determina como seu. São códigos lineares, por razões de sobrevivência e de identificação de "espécie", tanto mais rígidos quanto maior é a fragilidade desta e a sua ameaça de extinção.
Em Portugal, a velha aristocracia e a alta burguesia (refiro-me à que está enraizada no eixo Lisboa-Cascais, já que em outras regiões os códigos podem ser diferentes) regem-se por um conjunto de palavras - chamemos-lhe uma Cartilha - que define esse grupo específico, geralmente considerado como o dos eleitos entre os eleitos. Não falo daquilo a que as revistas cor-de-rosa chamam o jet set, isso é outra coisa. Aliás, uma "coisa" a que este grupo se orgulha de NÃO pertencer, com quem NÃO se dá e com quem NÃO quer misturas. O dito jet set é, praticamente, a sua antítese. Porque este grupo não se distingue pela conta bancária ou pelos sinais exteriores de riqueza, muito pelo contrário: tanto pode ter (e tem, frequentemente) uma situação financeira extremamente precária, como uma fortuna sólida, mas sempre discreta e gozada longe dos olhares públicos. E a exibição do estatuto é tão condenatória como o uso das palavras que determinam a exclusão social dos incautos.
Mas é só sobre esta ditadura de palavras que reflicto hoje. As autorizadas e as impronunciáveis, as que podem conferir aos forasteiros um passaporte para "o meio" (ainda que sempre sob reserva) e as que podem levar à liminar expulsão, sem apelo nem agravo. As palavras proibidas são como nódoas de vinho tinto numa toalha de linho alvíssima, mesmo que já rasgada e sem rendas à vista. Uma espécie de acordo ortográfico privado - embora se aplique praticamente só à expressão oral - de um Olimpo urbano e sofisticado que sempre reclamou para si um léxico especial. Um léxico sine qua non...
A Cartilha ainda vigora (hoje menos do que ontem, amanhã seguramente menos do que hoje) num território restrito, uma coutada onde se move uma espécie rara. Há quem dedique uma vida inteira a aprender a pisar esse campo minado, e chegue até a atravessá-lo com a destreza suficiente para pensar que, escapando às minas, enganou as sentinelas. Pura ilusão. Mesmo que nenhuma palavra o traia, há sempre um qualquer pormenor que revela o esforço, a falta de naturalidade, o medo de ser apanhado. Teve-se berço na coutada ou fora dela, é simples. O poder da Cartilha é o do irrefutável polegar de um imperador de Roma.
Vivo rodeada destes códigos há demasiado tempo para poder dar-me ao luxo de ignorá-los. Mais: por mimetismo ou bom ouvido, vou-os cumprindo, de forma automática, alinhando paulatinamente nesse exército que sei vigilante e sempre atento ao que dizem os seus soldados. Atento à menor tentativa de deserção de um deles, e, mais ainda, atento às tentativas de infiltração de estranhos. Não combato militantemente os códigos, é certo, mas acho ridícula a ditadura que eles impõem. A sua importância diz respeito a uma área geográfica de tal maneira limitada, que chega a ser risível: meia centena de quilómetros para além do perímetro, e perdem a validade. Dois passos fora do país e da língua portuguesa, e já não classificam ou desclassificam ninguém. Mas a verdade é que foram demasiados os anos em que estivemos fechados em nós próprios, olhando só o nosso precioso umbigo e desconhecendo a vastidão dos mundos que há para além dele.
Por mim, prefiro outras formas de avaliação menos fúteis e, sobretudo, mais fiáveis. Aquelas que agregam pessoas pela partilha de valores e princípios, de interesses e de gostos, enfim, por qualquer outro critério que não o da mera pirotecnia da expressão oral. E vejo, com satisfação, que a miscigenação das classes sociais tem vindo a ganhar terreno, de forma saudável e natural. Tudo se vai ajustando. Não são alheias a este facto a diluição de fronteiras e a diversidade de culturas que hoje em dia convivem com a nossa. Os tiques de classe vão, aos poucos, perdendo o seu peso. E ainda bem.
(Nota: O texto a azul claro, em cima, foi escrito propositadamente com as tais palavras proibidas. Para quem estiver interessado e ainda ache que vale a pena o esforço, apesar de tudo o que eu disse, aqui ficam as palavras aprovadas, que devem substituir as que estão a itálico (pela mesma ordem): casa de banho; marido; encarnado; boca/beiços; calças; carteira; presente; anos; possidónia; os miúdos/as crianças; mãe; pai; carro; casa; adeus; rapariga.)