Quarta-feira, 25 de Junho de 2008

Códigos

 "Saltou da cama e entrou no quarto de banho, para se arranjar. O esposo já estava pronto, na cozinha, à espera dela. Tomou um duche rápido, penteou-se, passou um batom vermelho nos lábios. Depois vestiu uma calça justa, sapatos e mala a condizer e desceu finalmente. Usava a pulseira que ele lhe tinha oferecido como prenda de aniversário, linda e nada pirosa. Os meninos vieram despedir-se da mamã e do papá, que sairam então para trabalhar, no automóvel novo que estava estacionado à porta da vivenda. Ainda disseram tchau à moça que vivia em frente."

 

 

Todos os grupos sociais têm os seus códigos de reconhecimento, de demarcação de território, exactamente como o jacto de urina deixado pelo leão nas árvores que circundam aquele que determina como seu. São códigos lineares, por razões de sobrevivência e de identificação de "espécie", tanto mais rígidos quanto maior é a fragilidade desta e a sua ameaça de extinção. 

 

Em Portugal, a velha aristocracia e a alta burguesia (refiro-me à que está enraizada no eixo Lisboa-Cascais, já que em outras regiões os códigos podem ser diferentes) regem-se por um conjunto de palavras - chamemos-lhe uma Cartilha - que define esse grupo específico, geralmente considerado como o dos eleitos entre os eleitos. Não falo daquilo a que as revistas cor-de-rosa chamam o jet set, isso é outra coisa. Aliás, uma "coisa" a que este grupo se orgulha de NÃO pertencer, com quem NÃO se dá e com quem NÃO quer misturas. O dito jet set é, praticamente, a sua antítese. Porque este grupo não se distingue pela conta bancária ou pelos sinais exteriores de riqueza, muito pelo contrário: tanto pode ter (e tem, frequentemente) uma situação financeira extremamente precária, como uma fortuna sólida, mas sempre discreta e gozada longe dos olhares públicos. E a exibição do estatuto é tão condenatória como o uso das palavras que determinam a exclusão social dos incautos.

 

Mas é só sobre esta ditadura de palavras que reflicto hoje. As autorizadas e as impronunciáveis, as que podem conferir aos forasteiros um passaporte para "o meio" (ainda que sempre sob reserva) e as que podem levar à liminar expulsão, sem apelo nem agravo. As palavras proibidas são como nódoas de vinho tinto numa toalha de linho alvíssima, mesmo que já rasgada e sem rendas à vista. Uma espécie de acordo ortográfico privado - embora se aplique praticamente só à expressão oral - de um Olimpo urbano e sofisticado que sempre reclamou para si um léxico especial. Um léxico sine qua non...

 

A Cartilha ainda vigora (hoje menos do que ontem, amanhã seguramente menos do que hoje) num território restrito, uma coutada onde se move uma espécie rara. Há quem dedique uma vida inteira a aprender a pisar esse campo minado, e chegue até a atravessá-lo com a destreza suficiente para pensar que, escapando às minas, enganou as sentinelas. Pura ilusão. Mesmo que nenhuma palavra o traia, há sempre um qualquer pormenor que revela o esforço, a falta de naturalidade, o medo de ser apanhado. Teve-se berço na coutada ou fora dela, é simples. O poder da Cartilha é o do irrefutável polegar de um imperador de Roma.

 

Vivo rodeada destes códigos há demasiado tempo para poder dar-me ao luxo de ignorá-los. Mais: por mimetismo ou bom ouvido, vou-os cumprindo, de forma automática, alinhando paulatinamente nesse exército que sei vigilante e sempre atento ao que dizem os seus soldados. Atento à menor tentativa de deserção de um deles, e, mais ainda, atento às tentativas de infiltração de estranhos. Não combato militantemente os códigos, é certo, mas acho ridícula a ditadura que eles impõem. A sua importância diz respeito a uma área geográfica de tal maneira limitada, que chega a ser risível: meia centena de quilómetros para além do perímetro, e perdem a validade. Dois passos fora do país e da língua portuguesa, e já não classificam ou desclassificam ninguém. Mas a verdade é que foram demasiados os anos em que estivemos fechados em nós próprios, olhando só o nosso precioso umbigo e desconhecendo a vastidão dos mundos que há para além dele. 

 

Por mim, prefiro outras formas de avaliação menos fúteis e, sobretudo, mais fiáveis. Aquelas que agregam pessoas pela partilha de valores e princípios, de interesses e de gostos, enfim, por qualquer outro critério que não o da mera pirotecnia da expressão oral. E vejo, com satisfação, que a miscigenação das classes sociais tem vindo a ganhar terreno, de forma saudável e natural. Tudo se vai ajustando. Não são alheias a este facto a diluição de fronteiras e a diversidade de culturas que hoje em dia convivem com a nossa. Os tiques de classe vão, aos poucos, perdendo o seu peso. E ainda bem.

 

(Nota: O texto a azul claro, em cima, foi escrito propositadamente com as tais palavras proibidas. Para quem estiver interessado e ainda ache que vale a pena o esforço, apesar de tudo o que eu disse, aqui ficam as palavras aprovadas, que devem substituir as que estão a itálico (pela mesma ordem): casa de banho; marido; encarnado; boca/beiços; calças; carteira; presente; anos; possidónia; os miúdos/as crianças; mãe; pai; carro; casa; adeus; rapariga.)

 

publicado por Ana Vidal às 00:03
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35 comentários:
De Luísa a 26 de Junho de 2008
A diluição das fronteiras talvez venha a ter esse efeito, Ana. Noto que os códigos de que fala já foram cuidadosamente transmitidos aos filhos daqueles que sempre os valorizaram e que mantêm muito activa a demarcação de territórios; mas se esses filhos passaram entretanto pelo estrangeiro, em experiências de estudo mais ou menos prolongadas, voltaram com outra abertura. Não sou, note-se, contra a demarcação de territórios; não sou contra um certo snobismo. Eles existem e não são sequer exclusivos das «upper classes». Mas se se fecham demasiado, se só seleccionam na base deste tipo de sinais e se se manifestam na afectação de modos e na superficialidade que às vezes se encontram por aí, não consigo ver neles senão… alguma pobreza de espírito? :-)
De Ana Vidal a 26 de Junho de 2008
Pois, Luísa... será deles o reino dos céus?
;)
De sofia k. a 26 de Junho de 2008
Era mesmo destas coisas que te falava ontem! Não distingo as pessoas pelo uso ou não das palavras chamadas proíbidas, pelos modos à mesa ou por aquilo que fazem na vida... distingo-as por outros valores, que me importam mais!

Também não fui habituada a dizer uma data de coisas, mas lá em casa ninguém 'apanhava' quando dizia vermelho ou prenda, tinha amigos que sim! Mas sei que duarante séculos achei que o verbo 'aleijar' era um palavrão, porque o meu pai não me deixava dizê-lo! Coisas da vida!

Mas é verdade que há quem meta nas gavetas quem diz assim e não diz assado, vivi uma escola inteira a fazer isso aos outros... fazíamos todos, felizmente curei-me! E conheço quem passe o dia a controlar-se para não usar essas palavras...

Li uma vez uma revista que dizia: 'Na praia X ou se é, ou não se é, e se não se é... nem vale a pena tentar!' Infelizmente, conheço tantos que pensam assim.

Acho que sou melhor sem esse preconceito e sem essas manias... por isso mesmo, também acho que conheço melhores pessoas. Apesar de tudo, às vezes, sabe bem um pouco de má-língua... não se pode ser perfeito!

beijinhos
De Ana Vidal a 27 de Junho de 2008
É verdade, falámos disto mesmo ontem.
Desses que passam uma vida inteira a controlar-se para parecerem o que não são... bem, só se pode ter pena, não é?
De mariav a 26 de Junho de 2008
Há códigos em todo o lado, que na maior parte das vezes dão origem a preconceitos. Estes, por sua vez, embaçam o nosso discernimento, impedindo-nos quase sempre de analisar livremente, levando-nos a fazer escolhas com base neles e não em valores “a sério”.
Cresci com esses códigos, alimentei durante tempo demais esses preconceitos. Hoje orgulho-me de ter amigos que os não tiveram, e que, talvez por isso mesmo, são muito melhores pessoas do que a maior parte dos que continuam a dar mais importância ao uso de palavras como “vermelho” do que ao facto de quem o faz poder ser muito mais íntegro, verdadeiro, solidário, e bem-formado do que eles.
Concordo com a Sofia: também acho que conheço melhores pessoas agora.
De Ana Vidal a 27 de Junho de 2008
Depois de lançar a confusão, já quase me sinto na obrigação de fazer de advogada do diabo: há gente boa e má em todas as camadas sociais, e muitos preconceitos também naquelas que às vezes nos parecem mais livres deles. São outros, mas não deixam de ser preconceitos. Como, por exemplo, o de medir pela mesma bitola todas as pessoas que têm estes "tiques" de classe.
Parece-me que o mais importante - e mais difícil, também - é conseguirmos, todos nós, abstrair desses pormenores quando se trata de avaliar alguém.
De minucha a 26 de Junho de 2008
Eu, que sempre achei que não era snob, e ainda hoje acho, tive um professor de linguística que me mandou fazer um trabalho sobre a importância da linguagem nos códigos.
nem percebi o que ele queria que fizesse.
Os temas dos trabalhos eram livres, só para mim foi imposto.
O Professor teve de me explicar o que queria....
passei a usar muitas das palavras proibidas, mas ainda há umas que me arrepiam
Vivenda, papá e mamã, moça
Mas do outro lado, beiços, também sempre me arrepiou, passei a usar boca, por lábios também ser impossível

beijinho
De Ana Vidal a 27 de Junho de 2008
:) Percebo-a tão bem, Minucha!
Beijinho
De CNS a 27 de Junho de 2008
Precisamos de códigos para nos sentirmos integrados. Precisamos de nos sentir integrados para manter a sensação de pertença a qualquer coisa. Pena que a busca da identidade dessa qualquer coisa se desvaneça neste ou noutros léxicos sociais. O "abre-te Sésamo" sobrepõe-se sem dúvida ao que existe para lá da gruta...

De Ana Vidal a 27 de Junho de 2008
A nuvem por Juno, Cristina... acho que é isso mesmo, e é uma pena. O que está na gruta é quase sempre tão mais valioso!
De Mad a 30 de Junho de 2008
Um reparo: "pirosa" não é o mesmo que possidónia. E nunca achei piroso dizer "pirosa"!

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