Não há muitos anos, ainda eu levava a vida na ponta de uma espada. A cada provocação - ou aquilo que me parecia uma provocação - saltava como uma mola, pronta a defender a minha dama de ocasião. Sobretudo quando o tema era a injustiça - em qualquer uma das suas infinitas variações - a minha reacção era imediata e "física": o coração disparava, os músculos retesavam-se como os de uma fera em estado de vigília, todos os sentidos ficavam de repente alerta e ao serviço da minha causa. Era uma espécie de Joana d'Arc, incorruptível e sempre a postos para uma boa batalha em defesa de utopias e sonhos. A verdade é que gostava de ouvir-me, de sentir-me invencível. Gostava de romper as barreiras do razoável e aventurar-me, sem rede, em trapézios em que a adrenalina eclipsava o mais elementar instinto de sobrevivência. Por ser tão inflamada e tão suicidariamente destemida, muitas vezes fui ao tapete. Mas muitas outras, talvez a maioria, saí em ombros do recinto. E reparava que sentia sempre, no fim, uma indecifrável sensação de derrota quando a vitória era claramente minha. Passado o êxtase da discussão, os louros eram estranhamente incómodos.
Demorei algum tempo a perceber a mensagem, vinda das profundezas da minha consciência. Mas cheguei lá, aos poucos, entendendo o que tinha de perigoso a minha atitude. E de arrogante. E, acima de tudo, de egótico. No calor da discussão e do alto da minha razão inatacável, algumas vezes não terei percebido a fragilidade de um opositor ou o seu desespero. Algumas vezes terei esmagado alguém liminarmente, sem me deter nas razões que levavam esse alguém a defender pontos de vista que me pareciam inaceitáveis. Os porquês, as causas, os eventuais equívocos. Ciente de que dava sempre iguais armas aos meus adversários, esquecia-me de que isso não bastava para que a luta fosse igualitária e, logo, inteiramente limpa.
Mas a vida foi-me ensinando a lição, e encarregou-se de limar e amaciar as minhas arestas. Aprendi, por exemplo, que a coerência não justifica tudo e que não é, por si só, um valor essencial (a História está cheia de déspotas que foram sempre coerentes). Dar o braço a torcer pode ser bem mais compensador. Parar para observar os estragos que estamos a fazer no adversário é não só uma atitude muito mais humanista como, muitas vezes, mais eficaz. Porque o humaniza também.
A maturidade, que me abriu os olhos para tudo isto (não é tudo mau...) trouxe-me, como compensação dos delirantes excessos perdidos, dois preciosíssimos presentes: a calma e o humor. Ironicamente, também com eles tenho que estar alerta. Ambos podem ser mais letais do que uma faca afiada. Tenho a plena noção de que fui ganhando algum inevitável cinismo pelo caminho, mas também uma visão mais tolerante dos outros e de mim própria.
A discussão pelo prazer da discussão, confesso, sempre há-de motivar-me. A dialética é para mim uma arte apaixonante e irresistível, que os meus genes provavelmente determinaram e a profissão acabou por substanciar. Tese, antítese e síntese são labirintos que me atraem como poucas outras coisas, e a ginástica mental parece-me muito mais preciosa do que aquela que se faz nos ginásios e nos deixa o físico em forma. Nas discussões alheias, galvaniza-me o espectáculo de inteligências em exercício (quando é o caso) e desespera-me a argumentação que se apoia em truques baixos e recursos menos nobres. Acho até que a dialética deveria ser uma modalidade olímpica, sujeita às regras de ouro dessas contendas superiores. Mas matar ou morrer já não é o meu estímulo. Agora, numa discussão, o que mais me encanta é o que aprendo. E, já agora, também um resto mortal de vaidade, que me ficou: o saber que posso ter ensinado alguma coisa.
De ana vidal a 17 de Setembro de 2007
És um filósofo com graça, Miguel. Pronto.
Beijo
De Miguel a 17 de Setembro de 2007
Quando escrevi sobre os meus oponentes na corrida, a minha ideia não era filosofar, era ser engraçado.
De Mario Cordeiro a 17 de Setembro de 2007
Miguel
Os recordes pessoais não devem ser comparados com os dos outros, nem os outros, nessas alturas, nos devem merecer qualquer atenção.
São momentos íntimos, de transcendência - pouco interessa se os outros não tiveram dinheiro para as botas ou se estavam com problemas conjugais.
A vitória é tua e só tua. É um recorde pessoal, não é olímpico ou mundial. Goza-o plenamente, numa imensa solidão e interioridade. Com o apoio silencioso e presente dos amigos, que também sentem como sua a vitória, mas apenas porque é a de um amigo. E apenas porque é tua, e só tua.
De Mario Cordeiro a 17 de Setembro de 2007
Ao ler-vos (entrada+comentários) fiquei com a sensação de concordar com todos, não no sentido de me esquivar a uma opinião, mas de achar que todos têm algo de razão.
No entanto, sublinharia duas ou três coisas:
- o calor que se põe na defesa de um ponto de vista não pode ser confundido com vontade de aniquilar o outro ou pensar-se que sé nós temos razão, ou seja, não
é sem+re uma questão de vida ou de morte. Creio que é a convicção que temos no que defendemos que nos faz expressarmo-nos verbal e gestualmente, arranjando às vezes adjectivos grandiloquentes, mas sempre no respeito das ideias dos outros. A diferença qualitativa está, quanto a mim, em saber mudar de opinião ou pelo menos, no final, saber incorporar aquilo que dos outros retemos como certo. E a próxima "produção", mesmo que épica, vai já ter ideias cada vez mais razoáveis e sólidas;
- alguns silêncios e falas breves podem ser mais agressivas e humilhantes do que uma verborreia acalorada;
- não creio que a tolerância seja directamente proporcional ao estilo e forma de apresentar pontos de vista;
- creio que devemos ser intolerantes com aquilo que toca em valores, mas começando essa prática de rigor em nós próprios;
- o Bem e o Mal existem e não são miscíveis, não são passíveis de Bloco Central nem se podem sentar à mesma mesa - daí, se acharmos que as nossas ideias estão de um lado, não podermos por vezes arranjar qualquer consenso;
- por último: o distanciamento emocional, a serenidade, a capacidade de escutar e a solidez da defesa das ideias que permite porventura um estilo "calmo" só pode ser resultado de uma coisa chamada sabedoria, e de outra chamada rigor. E como estes são inerentes à maturidade, é "tecnicamente" impossível um "adulto jovem" praticá-los. A evolução humana é assim. E desconfiemos sempre da sageza dos principiantes - acabam mais tarde por se tornar fanáticos fora de época, com tudo o que isso acarreta para eles e para os outros...
Boa semana!
De ana vidal a 17 de Setembro de 2007
Se tu soubesses, PP, como eu estou a anos-luz desse zen!... Nem me parece que queira lá chegar algum dia, acho que a emoção é um motor fundamental na vida e gosto muito de ser emotiva. O que eu aprendi foi a ser mais atenta aos sinais, a não julgar tão precipitadamente. E, acima de tudo, a não levar-me tão a sério. Um dia destes escrevo aqui sobre o papel do humor na minha transformação, que foi fundamental.
Miguel: Um beijinho de parabéns por essa vitória!!
A tolerãncia e o equilíbrio não se podem aprender nas escolas, infelizmente. Aprendem-se como tudo o resto, a custo e pagando o preço, com as cabeçadas que vamos dando. Mas há quem tenha a sorte de nascer com meio caminho andado, o que não é seguramente o meu caso.
De pedro sanchez a 16 de Setembro de 2007
Em primeiro lugar os nossos parabens ao Miguel pelo seu recorde na maratona de hoje.
Um dia peço-te para me levares a treinar contigo. Houve tempos em que corria bem e depressa, mas não sei se teria resistência neste momento e se o coração aqui do rapazito aguentaria.
Quanto ao tema discussões, tenho pena de ainda não ter conseguido chegar ao zen da Ana, deve ser do meu sangue Árabe e Lusitano que me ferve nas veias e que tem demorado a arrefecer. Nasci e tenho vivido toda a vida entre os bairros Lisboetas de Alfama e Castelo, com uns genes danados que se pegam às pessoas.
Mas tal como o Miguel disse tambem eu tenho alguma inveja, mas no bom sentido, de a tolerância ainda não me ter invadido por completo. Mas eu vou estar à espera dessa invasão benigna, e não a vou confrontar.
Mas tambem se fossemos perfeitos não seria este o local por onde andaríamos, e eu Amo cá andar.
Bjs, pp
De Miguel a 16 de Setembro de 2007
A descoberta que a Ana tão bem descreve neste texto tem, parece-me,um nome: tolerância.É uma pena que a tolerância seja, geralmente, e para a maioria de nós, uma descoberta e , ainda por cima, tardia.Devia, sim, ser um aprendizado , feito em sincronia com a primeira leitura dos bons autores ,com o cálculo das equações e todas as outras aprendizagens escolares. Se assim fosse, o mundo teria nas mãos a chave do seu próprio equilíbrio.
Há, no entanto, quem seja capaz de praticar a tolerância de uma maneira sistemática.É gente boa e eu invejo-os porque hoje completei uma meia maratona com recorde pessoal;mas pensei nos que ficaram atrás de mim - pela insuficiência de treino ou pela falta de ambição ; e nos que ficaram à minha frente - pelo excesso de treino ou pela ambição desmedida .Todos muito fora das fronteiras da média que eu próprio construí.
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